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A INDENIZAÇÃO NA DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA À LUZ DOS PRECEITOS CONSTITUCIONAIS

A INDENIZAÇÃO NA DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA À LUZ DOS PRECEITOS CONSTITUCIONAIS

 

Murilo Sousa e Silva

 

Resumo. O presente trabalho almeja apresentar e discutir a forma de pagamento da indenização em desapropriação indireta, utilizando-se de metodologia indutiva, com análise da Constituição Federal, legislações específicas sobre o tema, doutrina e jurisprudência. Invocando o Estado Democrático de Direito, segundo o qual os atos devem observar o ordenamento jurídico vigente, além de princípios e garantias fundamentais e os preceitos legal e constitucional que dispõem que a indenização em caso de desapropriação deve ser prévia, justa e em dinheiro, o presente trabalho tem como objetivo discutir, com base na ponderação de princípios, se o pagamento da indenização por desapropriação indireta poderá ocorrer de forma direta, sem incidência do regime de precatórios, destacando as problemáticas envolvidas.

Palavras-chave: Direito Administrativo. Desapropriação indireta. Indenização. Forma de pagamento. Princípios.

  1. 1.      Introdução

     Questão peculiar e delicada envolve a forma de pagamento da indenização em desapropriação indireta, visando conferir máxima efetividade à contraprestação devida pelo Estado ao desapropriar o bem particular.

     Tratando-se de hipótese de desapropriação por utilidade pública, deve o Poder Público empregar o procedimento insculpido no Decreto-Lei nº 3.365/41, que prevê a indenização prévia, justa e em dinheiro e a necessidade de ingresso com a ação de desapropriação quando há discordância dos valores ofertados por parte do particular.

     Muitas vezes, contudo, a desapropriação materializa verdadeiro apossamento administrativo, em que o Poder Público toma para si o bem particular sem a observância ao devido processo legal e sem efetuar o pagamento da indenização devida.

     Exsurge a necessidade de o particular ingressar com a ação judicial de cunho indenizatório, denominada desapropriação indireta, que observa o mesmo procedimento previsto para a desapropriação ordinária.

     Ao final, o crédito reconhecido e devido pela Fazenda Pública, desde que não se trate de Requisições de Pequeno Valor (RPV), será pago por meio da ordem cronológica de apresentação dos precatórios, obedecendo as dotações orçamentárias e os créditos adicionais abertos para este fim.

     Invocando o Estado Democrático de Direito, segundo o qual os atos devem observar o ordenamento jurídico vigente, além dos princípios e garantias fundamentais do devido processo legal, da razoabilidade e da proporcionalidade, a dignidade da pessoa humana e os preceitos legal e constitucional que dispõem que a indenização em caso de desapropriação deve ser prévia, justa e em dinheiro, busca-se discutir, com base na ponderação de princípios, valores e axiomas, se o pagamento da indenização por desapropriação indireta poderá ocorrer de forma direta, sem incidência do regime de precatórios, enfocando nos efeitos decorrentes.

  1. 2.      Breve escorço sobre a desapropriação

     Tratando-se de intervenções na propriedade privada, a desapropriação constitui uma de suas modalidades mais antigas. Com a ascensão da Roma Antiga, foi necessário um reordenamento urbano visando a abertura de vias, praças e espaços públicos para melhor adequação da malha de tráfego, tendo sido largamente utilizado o ainda incipiente instituto da desapropriação (DI SARNO, Daniela Campos Libório, 2014, p. 35).

     Já na Idade Média, com o cerne em questões de segurança, incluindo a criação e melhoramento de fortificações, as desapropriações foram utilizadas sob o critério da utilidade pública, adotando estruturas de cidades fisicamente limitadas e mais compactas, induzindo uma logística de trânsito que visava resguardar um ambiente mais seguro e protegido (HAROUEL, Jean-Louis, 2001, p. 43).

     Com o passar do tempo, o instituto da desapropriação sofreu uma série de mutações, cujas discussões doutrinárias perpassavam sobre a melhor forma de utilizar a desapropriação para redesenhar o espaço urbano sob a ótica do interesse coletivo frente à ocupação do solo urbano.

     Nessa esteira de raciocínio, partindo do pressuposto de que a propriedade privada só existe pois o sistema constitucional assim instituiu, cabível ao Poder Público avocar a propriedade privada para utilizá-la com vistas ao interesse comum:

De toda forma, a desapropriação sempre se situou em oposição e complementaridade à propriedade privada: só há propriedade privada porque o sistema constitucional permite e, na medida em que o interesse público deve prevalecer sobre o privado, é cabível, mediante certas circunstâncias, que o Poder Público requeira a propriedade privada para dela fazer um uso de interesse comum, e não mais individual, particular. (DI SARNO, Daniela Campos Libório, 2014, p. 36).

A desapropriação é “o ato pelo qual o Estado, necessitando de um bem particular, para fins de interesse público, obriga o proprietário a transferir-lhe a propriedade desse bem, mediante prévia e justa indenização” (CRETELLA JÚNIOR, José, 1996, p. 379).

     Ainda no âmbito conceitual e discorrendo acerca das modalidades da desapropriação, pode-se assim definir:

Desapropriação ou expropriação é a transferência compulsória da propriedade particular para o Poder Público ou seus delegados, por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante prévia e justa indenização e, ainda, por desatendimento a normas do Plano Diretor (desapropriação-sanção, art. 182, §4º, III, da CF), neste caso com pagamento em títulos da dívida pública municipal, aprovados pelo Senado Federal. (MEIRELLES, Hely Lopes, 1994, p. 303).

     Não obstante os aspectos distintos utilizados por cada doutrina para conceituar o instituto da desapropriação, observa-se que a definição perpassa sempre por elementos comuns, quais sejam: procedimento de direito público; interesse coletivo; perda compulsória da propriedade e justa indenização.

     Quando cumprida a função social, pode o bem jurídico tutelado ser desapropriado por utilidade pública, procedimento regido pelo Decreto-Lei nº 3.365/41, cujos casos assim considerados estão elencados no artigo 5º do Diploma Legal supramencionado. Ainda inserida no âmbito do cumprimento da função social, pode incidir a desapropriação por interesse social, regida pela Lei nº 4.132/62, que visa promover a justa distribuição da propriedade ou condicionar o uso ao bem estar social, conforme previsto nos artigos 1º e 2º, da legislação específica.

     Nas hipóteses de desapropriação de bens que cumpram a função social, a indenização se dará sempre mediante justa e prévia indenização em dinheiro.

     Acaso não cumprida a função social em imóveis urbanos, o que ocorre quando não atendidas as exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, conforme artigo 182, §2º, da Constituição Federal, deverá o proprietário, mediante exigência disposta em lei específica, efetuar seu adequado aproveitamento (art. 182, §4º, Constituição Federal). Caso se mantenha inerte, possui o Poder Público a prerrogativa de realizar a chamada desapropriação urbanística, cuja indenização ocorrerá mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos (art. 182, §4º, III, da Constituição Federal).

     Tratando-se de imóvel rural que não cumpra a sua função social, definida no artigo 186, da Constituição Federal e no artigo 9º, da Lei nº 8.629/93, caberá ao Poder Público realizar a desapropriação para fins de reforma agrária. Na hipótese narrada, a indenização se dará mediante títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos a partir do segundo ano de sua emissão, consoante disposto no artigo 184, da Constituição Federal. As benfeitorias úteis e necessárias, nesta modalidade, serão indenizadas em dinheiro, conforme pressuposto normativo contido no parágrafo primeiro do artigo supracitado.

     Tem-se, ainda, a desapropriação de glebas com culturas ilegais de plantas psicotrópicas, que constitui uma sanção ao proprietário que utiliza o imóvel de forma nociva e prejudicial à sociedade, além de notoriamente descumprir a função social. Sem prejuízo das possíveis penalidades no âmbito cível e penal, a Constituição Federal, em seu artigo 243, impõe a imediata desapropriação da área, sem qualquer pagamento.

     A consumação da desapropriação em suas mais distintas hipóteses exige, indubitavelmente, a observância ao procedimento instaurado, incluindo a necessidade de indenização ao desapropriado. Afasta-se o basilar direito à propriedade do particular (artigo 5º, XXII, da Constituição Federal) para transferir de modo compulsório o bem ao Poder Público, cuja estrita observância ao devido processo legal não pode ser descurada:

O instrumento de supressão da propriedade é a desapropriação, cuja regra geral se abriga no art. 5º, XXIV, da Constituição, contendo esta, no entanto, outras normas pertinentes ao mesmo instituto. Sendo um instrumento de exceção, somente pode ser aplicado se estiverem presentes os pressupostos constitucionais que o autorizam. Ausente qualquer deles, a desapropriação estará despida de legitimidade.” (CARVALHO FILHO, José dos Santos. 2009, p. 3).

     Tratando-se o direito à propriedade como direito fundamental resguardado na Carta Magna, é necessário um exame acurado do processo expropriatório, até porque “a desapropriação constitui um duro golpe no direito de propriedade, atingindo-o em seu ponto nuclear.” (CARVALHO FILHO, José dos Santos, 2009, p. 4).

     Não obstante a robustez e relevância de se observar o procedimento necessário para a consumação do ato expropriatório, especialmente nos casos de utilidade pública regidos pelo Decreto-Lei nº 3.365/41, não raros são os casos em que administradores públicos, infringindo princípios e garantias fundamentais atinentes à desapropriação, ao devido processo legal e violando o direito à propriedade, realizam verdadeiro apossamento administrativo e transferem de modo compulsório a propriedade do particular para o Poder Público sem o pagamento da contraprestação devida na forma de indenização.

     Diante do cenário apresentado, a alternativa cabível ao particular desapropriado é a propositura da ação judicial visando o recebimento da indenização devida, denominada desapropriação indireta.

  1. 3.   Desapropriação indireta

     Diferente das demais hipóteses abordadas, a desapropriação indireta não constitui um instituto jurídico propriamente dito, eis que só se manifesta quando o Poder Público, de modo ilícito, toma para si o bem do particular sem o devido processo legal e sem o pagamento da indenização devida. Trata-se de instrumento processual que visa o recebimento da lídima contraprestação em razão do ato ilícito perpetrado pela Administração Pública:

A chamada desapropriação indireta não chega a ser um instituto de direito por ser um mero instrumento processual para forçar o Poder Público a indenizar o ato ilícito, representado pelo desapossamento da propriedade particular, sem o devido processo legal, que é a desapropriação. (HARADA, Kiyoshi, 2005, p. 187).

     Estando o administrador público vinculado ao princípio da legalidade, segundo o qual ao Poder Público só é dado realizar o que expressamente dispõe a legislação (artigo 37, caput, da Constituição Federal), é crível concluir que a desapropriação indireta figuraria como hipótese excepcional:

Por via de regra o desapossamento administrativo raramente deverá ocorrer pois se presume no Poder Público um alto respeito pelos direitos alheios e espírito de continência ante a prática de atos violentos ou tirânicos. (SODRÉ, Eurico, 1955, p. 94).

     Nos cenários mais auspiciosos – e certamente utópicos – o trilho ideal é a manifesta observância ao procedimento da desapropriação, inclusive no que tange à indenização prévia, justa e em dinheiro. A desapropriação indireta, nesta conjectura, teria fins delimitados, restritos aos casos de equívocos no procedimento ou na implantação.

     A prática irregular, lamentavelmente, assume contornos cada vez mais comuns, cujo desapossamento de imóvel de particular sem seu consentimento não mais se limita a casos de enganos na locação da área. Em algumas comunas, existem até planos de ocupação ilegal. (HARADA, Kiyoshi, 2005, p. 187).

     Até mesmo em nações com a tradição mais sólida, observa-se a incidência não rara da necessidade de utilização do instrumento da desapropriação indireta:

O ideal seria seguir sempre o caminho da desapropriação regular, mas essa desejável proteção de interesses individuais às vezes contrasta com exigências concretas, o que se reconhece mesmo em países em que a tradição de devido processo é a mais sólida. Nos Estados Unidos, como visto, a Corte Suprema se contenta com apreciação ad hoc das situações para determinar se tal ou qual restrição administrativa à utilização e disponibilidade de bens ultrapassou os limites da razoabilidade, de modo a ensejar indenização. (MOREIRA, João Batista Gomes, 1999, p. 14).

     Movidos pelo interesse em viabilizar a implantação de determinado melhoramento público, os administradores públicos acabam por desapropriar determinados imóveis, mediante prévia aprovação decorrente de lei ou por órgão com tal incumbência. Todavia, sem a dotação orçamentária correspondente, implicando em séria violação aos princípios orçamentários e aos direitos dos proprietários.

     Ainda que regularmente publicado o ato declaratório de desapropriação, mas sem os recursos orçamentários e financeiros disponíveis, materializa-se a irregularidade no procedimento desapropriatório, configurando-se verdadeiro esbulho possessório, o que enseja a necessidade de utilização do instrumento da desapropriação indireta.

     Nesta linha de intelecção, a desapropriação indireta constitui ação judicial com natureza jurídica de direito real, na qual o particular expropriado, que deveria figurar como réu na desapropriação regular, assume a condição de autor na ação judicial:

A indenização é apurada consoante o processo estabelecido na Lei de Desapropriações, isto é, o Poder Público que cometeu o ato ilícito é condenado a pagar a mesma indenização que pagaria na expropriatória regular. Há uma inversão nos polos da relação jurídico-processual: o proprietário passa a ser o autor, ao passo que o Poder Público assume a posição de réu. A ação de desapropriação indireta tem, pois, caráter de direito real, tanto é que somente a prescrição aquisitiva a atinge. (SALLES, José Carlos de Moraes, 1995, p. 745).

     Para o cabimento da ação de desapropriação indireta, necessário o cumprimento de dois requisitos legais: a ocorrência do apossamento administrativo do imóvel e a demonstração, pelo autor, da titularidade do domínio da área apossada, ainda que na comprovada condição de posseiro (HARADA, Kiyoshi, 2005, p. 189-191).

  1. 4.   A indenização por desapropriação indireta

4.1. Regime de precatórios

     A atuação da Fazenda Pública em juízo goza de prerrogativas específicas, dentre elas, a instituição pelo legislador constituinte do regime de precatórios para pagamento de dívidas decorrentes de decisões judiciais transitadas em julgado em que o Poder Público é condenado a pagar determinada obrigação. Exceção feita aos valores inseridos nas Requisições de Pequeno Valor (RPV), conforme disposto no artigo 100, §3º, da Constituição Federal.

     Do ponto de vista conceitual, precatório é a forma adotada para o pagamento de dívidas da Fazenda Pública em juízo:

De precatorius, é especialmente empregado para indicar a requisição ou, propriamente, a carta expedida pelos juízes da execução de sentenças, em que a Fazenda Pública foi condenada a certo pagamento, ao Presidente do Tribunal, a fim de que, por seu intermédio, se autorizem e se expeçam as necessárias ordens de pagamento às respectivas repartições pagadoras. (DE PLÁCIDO E SILVA, 1982, fl. 416).

Diante de um cenário pernicioso que persistiu durante anos, em que se privilegiavam os apaniguados no ato de pagamento dos débitos da Fazenda Pública, em detrimento dos créditos hígidos e previamente instituídos dos demais cidadãos, o regime de precatórios visava suplantar essas distorções, mediante a observância da ordem cronológica de apresentação dos precatórios:

Como se percebe, as Constituições têm preceituado que os pagamentos devidos pela Fazenda Pública se efetuem na ordem de apresentação dos precatórios de forma reiterada, com a finalidade de afastar os abusos ocorridos anteriormente, quando vigorava uma das formas mais correntes da advocacia administrativa, dando-se preferência aos pagamentos de credores cujos advogados eram os mais poderosos e influentes e, não raro, com desrespeito à precedência a que tinham direito titulares de pagamentos que deveriam ser realizados anteriormente. (PELEGRINI, Márcia, 2003, p. 3).

No âmbito específico da ação judicial de desapropriação indireta, a procedência dos pedidos pórticos imputará ao Poder Público o pagamento da obrigação específica, o que se dará, na fase de cumprimento de sentença, por meio do regime de precatório, consoante previsto no artigo 100, da Constituição Federal:

Art. 100. Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim.

     Na situação posta, serão incluídas no orçamento das entidades de direito público verbas necessárias ao pagamento das sentenças transitadas em julgado, constantes de precatórios judiciais, até 1º de julho, cujo pagamento, em tese[2], será até o final do exercício seguinte, quando terão seus valores atualizados monetariamente, tudo conforme disposto no artigo 100, §5º, da Constituição Federal.

     Invocando a ponderação dos princípios constitucionais, indaga-se se o pagamento de indenização oriunda de desapropriação indireta só ocorre na forma estanque e inexorável do regime de precatórios, ou se seria possível a constrição direta do valor pecuniário do ente público expropriante.

4.2. A indenização por desapropriação indireta e os princípios constitucionais

     Não obstante a previsão do pagamento por meio de precatórios no âmbito constitucional dos débitos judiciais da Fazenda Pública, também não se pode ignorar que a Carta Magna também prevê, de modo expresso, a forma de pagamento das indenizações decorrentes de desapropriação, inclusive constituindo garantia fundamental. Assim dispõe o artigo 5º, XXIV, da Constituição da República:

Art. 5º [...] XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;

     De modo bastante próximo à redação do preceito constitucional supratranscrito, o artigo 32, do Decreto-Lei nº 3.365/41, também garante ao particular que tem o bem desapropriado a indenização prévia e em dinheiro: “Art. 32. O pagamento do preço será prévio e em dinheiro”. 

     Além do mais, tratando-se da hipótese de desapropriação urbanística, o pagamento da prévia e justa indenização em dinheiro também é assegurado aos expropriados de imóveis urbanos, pois “As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa indenização em dinheiro.” (Artigo 182, §3º, da Constituição Federal).

     Questiona-se, portanto, se a submissão ao regime de precatórios se enquadraria nos dispositivos constitucionais e legal que garantem ao expropriado indenização prévia, justa e em dinheiro.

     De modo prefacial, não podemos perder de vista que o Estado Democrático de direito, com suas regras, princípios e diretrizes, coloca o Poder Público e os particulares sob as regras do ordenamento jurídico pátrio. Desta feita, o particular que ingressa com a desapropriação indireta, só existente em virtude do ato ilícito praticado pelo Estado que desrespeita a norma previamente estabelecida, não pode sucumbir ao precatório, mais uma medida protelatória imposta pelo Estado em desfavor do particular na tentativa hercúlea e improvável de receber sua indenização:

O Estado que não paga, caloteiro, que toma a propriedade alheia, pela execrável prévia imissão; que pratica o esbulho, pela malsinada ‘desapropriação indireta’; que arrasta à eternidade a sua fila de credores, pelos não menos abomináveis precatórios; que utiliza expedientes de pura tecnicalidade para postergar feitos, com teses já vencidas; que utiliza processos legislativos para parcelar suas dívidas em dez longos anos, é realmente um Estado de Direito? (BEZNOS, Clóvis, 2016, p. 17).

     O Estado de Direito, cuja essência é a submissão dos entes às normas e direitos fundamentais, sofre verdadeiro ultraje justamente do Poder Público, quem deveria por ele primar.

     Na análise específica do mandamento constitucional que estabelece a forma de indenização em casos de desapropriação (art. 5º, XXIV, da CF), resta violado o caráter prévio da indenização a ser paga pelo ente público que expropria o imóvel e não efetua o pagamento da indenização, eis que o expropriado, no cenário mais otimista, só teria seu patrimônio recomposto após o trânsito em julgado da ação de desapropriação indireta, com o imóvel já na propriedade do ente público expropriante.

     No ato da consumação da desapropriação, caberia ao particular ser plenamente restabelecido da situação patrimonial anterior ao ato expropriatório:

Assim é que, sendo o indivíduo privado de seu bem, deverá ser ressarcido com o recebimento em pecúnia do valor exatamente correspondente ao valor do bem que lhe foi compulsoriamente retirado, de modo que lhe seja possível o pleno restabelecimento da situação patrimonial anterior ao ato expropriatório. (PELEGRINI, Márcia. 2003, p. 6).

     Nesta linha de intelecção, impossível adequar o reconhecidamente moroso regime de precatórios com a necessidade de indenização prévia, ainda mais considerando que só incidiria após o trânsito em julgado de ação judicial de desapropriação indireta.

     A indenização justa, por outro viés, representa a recomposição efetiva e na inteira medida do que fora desapropriado. Com a indenização recebida, deve ser capaz o proprietário de adquirir outro imóvel nas mesmas condições:

Indenização justa, prevista no art. 5º, XXIV, da Constituição, é aquela que corresponde real e efetivamente ao valor do bem expropriado, ou seja, aquela cuja importância deixa o expropriado absolutamente indene, sem prejuízo algum em seu patrimônio. Indenização justa é a que se consubstancia em importância que habilita o proprietário a adquirir outro bem perfeitamente equivalente e o exime de qualquer detrimento. (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio, 2013, p. 728-729).

     Aguardar de modo indefinido o transcurso do processo judicial para, só após, ingressar na fila dos precatórios na expectativa de receber a indenização apta a recompor seu patrimônio, caso efetivamente se concretize, certamente passa ao largo das noções mais basilares de justo e não se coaduna com a recomposição efetiva apta a tornar o proprietário indene do prejuízo sofrido.

     Do mesmo modo, reduzir o legítimo direito do particular em ser indenizado a um precatório, comumente sem prazo algum para ser saldado, também não pode significar indenização em dinheiro. 

Aos esbulhados pelo Poder Público simplesmente resta o ínvio caminho da demanda judicial, em face das pessoas públicas, que fruem de privilégios processuais tais como os referentes aos prazos, para, depois de vencida essa íngreme escalada, se verem na contingência de iniciar a penosa execução, que após a sua liquidação coloca o administrado na via dos precatórios, com o risco de uma emenda constitucional parcelar esses créditos em dez longos anos. (BEZNOS, Clóvis, 2016, p. 55).

     Necessário, pois, realizar a devida ponderação dos princípios para valorar o caso concreto da forma devida. Partindo da premissa de que a condenação da Fazenda Pública em desapropriações indiretas nasce da sua inobservância ao ordenamento jurídico vigente, que determina a indenização prévia, justa e em dinheiro, resta violado o devido processo legal, com escora no artigo 5º, LV, da Constituição Federal. 

Devido processo legal transmite, portanto, em sentido amplo, a noção do que é reto e justo, acima de qualquer concepção normativa. Nessa perspectiva, não se refere somente à garantia processual, mas conduz à exigência de que todas as normas sejam substancialmente justas. (MOREIRA, João Batista Gomes, 1999, p. 5).

     Ante a franca inobservância ao devido processo legal, não pode ser beneficiado o ente expropriante, valendo-se do regime de precatórios, com a prorrogação indefinida do seu dever em indenizar, obrigação que deveria ter cumprido de modo prévio.

     O expropriado, por seu turno, é obrigado a suportar sozinho os efeitos nefastos da retirada compulsória de sua propriedade particular, sem ser indenizado no ato, sob o pretexto da utilização do bem em prol da coletividade. Impõe-se ao desapropriado ônus exclusivo, o que desequilibra a relação pactuada e fere de modo atroz o princípio da isonomia, previsto no artigo 5º, caput, da Carta Magna.

Também é vulnerado o princípio constitucional da igualdade, pela imposição de sacrifício de direito especialmente a alguém pela ação administrativa de construção da obra pública, fruída pela coletividade, ou pela própria Administração, sem nenhuma compensação. (BEZNOS, Clóvis, 2016, p. 54).

     O direito constitucional à propriedade, insculpido no artigo 5º, XXII, da Constituição Federal é severamente violado, pois o particular, além de ficar sem o seu imóvel, recebe como contraprestação uma mera expectativa de direito de talvez um dia receber a indenização por meio do precatório.

     Não se vislumbra a observância aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade ao submeter a indenização do expropriado ao regime de precatórios, cujo apossamento administrativo, de inopino, deixa-o desprovido de sua propriedade e da sua contraprestação devida, violando as vigas mestras da dignidade da pessoa humana, fundamento da República estampado no artigo 1º, III, da Constituição Federal.

     Impingir ao expropriado o injurioso regime de precatórios nas circunstâncias volvidas apenas sedimenta a “crise de efetividade” oriunda de determinadas decisões judiciais, principalmente em se tratando de débitos impostos à Fazenda Pública, cuja efetiva satisfação do provimento judicante se esvai:

Meditando sobre essas proposições e convencidos de que a ordem jurídica deve tender à sua concretização, contemplamos perplexos o que vem acontecendo com os pagamentos devidos pela Fazenda Pública, mesmo nos Estados e Municípios mais ricos da Federação, quando os direitos dos indivíduos, como a justa indenização na desapropriação, os direitos de funcionários que obtiveram na justiça o reconhecimento de vantagens, os direitos de todos os prejudicados pela atuação do Estado, ainda que necessária, e que propuseram ações com fundamento no art. 107 da Constituição Federal, e outros, ficam postergados pela omissão da Administração em efetivar o pagamento o mais rápido possível. (GRECO FILHO, p. 101 e 102)

     De modo a ponderar os importantes princípios explanados, mormente considerando a necessidade de indenização prévia, justa e em dinheiro, a inércia do Poder Público em efetuar o pagamento quando devidamente intimado em fase de cumprimento de sentença implica na necessidade de constrição imediata do valor em pecúnia, sem a incidência do ultrajante regime de precatórios, oportunizando a manifestação prévia do ente público executado (art. 535, CPC/2015). 

Além de fazer justiça no caso concreto, tal orientação tem a finalidade de desestimular a reiteração de desapropriações indiretas, as quais, muitas vezes, traduzem verdadeiros confiscos, considerando-se, conforme já foi ressaltado, a morosidade das ações de indenização, com sucessivos recursos e pagamento mediante precatório. (MOREIRA, João Batista Gomes, 1999, p. 16).

     Trata-se, portanto, da única forma de restabelecer o patrimônio do expropriado em dinheiro, em conjuminância com a garantia fundamental estampada no artigo 5º, XXIV, da Constituição Federal. 

Assim é que, sendo o indivíduo privado de seu bem, deverá ser ressarcido com o recebimento em pecúnia do valor exatamente correspondente ao valor do bem que lhe foi compulsoriamente retirado, de modo que lhe seja possível o pleno restabelecimento da situação patrimonial anterior ao ato expropriatório. (PELEGRINI, Márcia, 2003, p. 06).

     A matéria debatida ultrapassa as altercações doutrinárias e, devido a sua relevância prática, encontra reflexo nas discussões jurisprudenciais.

     O Supremo Tribunal Federal já se pronunciou acerca da submissão das indenizações oriundas de desapropriação indireta aos regimes de precatórios[3], assim como também se manifestou de forma favorável à constrição direta de valores do Poder Público nas ações de mesma natureza[4], quando não efetuam o pagamento voluntário da obrigação em sede de cumprimento de sentença.

     Em razão da sua relevância e visando pacificar a matéria do ponto de vista jurisprudencial, a questão foi submetida ao Supremo Tribunal Federal que reconheceu a existência da questão constitucional suscitada, qual seja, saber se e como a justa e prévia indenização em dinheiro assegurada pelo artigo 5º, XXIV, da Constituição Federal de 1988 se compatibiliza com o regime de precatórios instituído no artigo 100 da Carta Magna.

     Sob o rito da repercussão geral, o Recurso Extraordinário 922.144/MG, de Relatoria do Ministro Luis Roberto Barroso, aguarda a manifestação do Relator desde 22/06/2016. Vejamos a decisão que acatou a repercussão geral da matéria debatida:

Ementa: DIREITO CONSTITUCIONAL E DIREITO ADMINISTRATIVO. DESAPROPRIAÇÃO. GARANTIA DE JUSTA E PRÉVIA INDENIZAÇÃO EM DINHEIRO. COMPATIBILIDADE COM O REGIME DE PRECATÓRIOS. PRESENÇA DE REPERCUSSÃO GERAL. 1. Constitui questão constitucional saber se e como a justa e prévia indenização em dinheiro assegurada pelo art. 5º, XXIV, da CRFB/1988 se compatibiliza com o regime de precatórios instituído no art. 100 da Carta. 2. Repercussão geral reconhecida. Decisão: O Tribunal, por unanimidade, reputou constitucional a questão. O Tribunal, por unanimidade, reconheceu a existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada. (STF – RE: 922.144/MG. Relator: Min. Luis Roberto Barroso. Data: 30/10/2015).

     Não se pode, pois, conceber que as iterativas violações do Poder Público ao devido processo legal e à garantia constitucional de desapropriação prévia, justa e em dinheiro, propiciem ao expropriante a indefinida restituição da indenização por meio do moroso regime de precatórios, atribuindo ao credor o ônus exclusivo de suportar o ato ilícito perpetrado pelo próprio ente público, em franca dissensão com os princípios do devido processo legal, isonomia, razoabilidade, proporcionalidade, direito à propriedade e em desrespeito à dignidade da pessoa humana e ao Estado de Direito, culminando na crise de efetividade que açoda as decisões judiciais, especialmente em se tratando de condenações impostas em desfavor da Fazenda Pública.

  1. 5.   Conclusão

     Houve a exposição do histórico, conceitos e correntes doutrinárias sobre a desapropriação para se chegar às explanações envolvendo o instrumento jurídico da desapropriação indireta, que se manifesta quando descumprida a norma atinente por parte do Poder Público. O intuito foi deflagrar o real escopo do instrumento jurídico à disposição do particular expropriado, que é permitir-lhe o recebimento da indenização quando é alvo do procedimento expropriatório.

     Não obstante a adoção pelo ordenamento jurídico pátrio do pagamento devido pela Fazenda Pública por meio do regime de precatórios, a aplicação da constrição imediata de pecúnia do Poder Público expropriante na fase de cumprimento de sentença não infirma a circunstância apresentada, mas apenas pondera princípios e valores como forma de indenizar o expropriado de modo justo, prévio e em dinheiro, modalidade de pagamento que igualmente encontra respaldo na Constituição Federal e não pode ser encarada como letra morta.

     Partindo da premissa de que a desapropriação indireta se materializa com a violação ao devido processo legal por parte do expropriante, somado à necessidade de efetuar o pagamento da indenização de modo prévio, justo e em dinheiro, submeter o expropriado ao regime de precatórios açoda de modo veemente os mandamentos constitucionais e legais que estabelecem a forma de pagamento da indenização, atacando o Estado de Direito ao não se compatibilizar com os princípios da isonomia, razoabilidade, proporcionalidade, direito à propriedade e o fundamento da República da dignidade da pessoa humana.

     Do ponto de vista jurisprudencial, malgrado a existência de posicionamentos antagônicos, inclusive no âmbito dos Tribunais Superiores, o Supremo Tribunal Federal avocou a questão como matéria sujeita à repercussão geral e decidirá se e como a justa e prévia indenização em dinheiro assegurada pelo art. 5º, XXIV, da Constituição da República se compatibiliza com o regime de precatórios instituído no art. 100 da Carta Magna.

     Sendo assim, a possibilidade de constrição direta e imediata de dinheiro do ente público expropriante em indenizações decorrentes de desapropriação indireta, sem a submissão ao regime de precatórios, é amplamente convergente com os ideários máximos da justiça, repelindo a famigerada crise de efetividade dos provimentos judicantes, além do respaldo doutrinário e jurisprudencial, até porque mais grave do que o ultrajante apossamento administrativo, é permitir que a vítima não seja efetivamente reparada.

     Por tudo isso, na perene busca de sopesar o que é realmente justo, a constrição direta de pecúnia do ente público expropriante em desapropriação indireta já na fase de cumprimento de sentença se afigura como a possibilidade mais clara e efetiva de efetuar a contraprestação devida, ainda mais diante da ausência de previsibilidade mínima instaurada pelo regime de precatórios. Além do aspecto pedagógico, visando prevenir futuras manobras arbitrárias no procedimento de desapropriação, mostra-se como a maneira mais justa e equânime de se atingir o desiderato do ordenamento jurídico: atuar como um instrumento eficaz para o deslinde da questão posta, colimando a paz social.

  1. 6.   Bibliografia

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Murilo Sousa e Silva

Murilo Sousa e Silva

Advogado, pós-graduado em Direito Civil e Processo Civil (Faculdade Cândido Mendes – RJ), pós graduado em Direito Civil (UFG).

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