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PRECEDENTES JUDICIAIS NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REFLEXÕES SOBRE UM PERÍODO PÓS-PANDEMIA

PRECEDENTES JUDICIAIS NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REFLEXÕES SOBRE UM PERÍODO PÓS-PANDEMIA

 

Tainara Souza Amaral

RESUMO

Os precedentes judiciais são uma das mais importantes novidades trazidas pelo código de processo civil e representam mais um mecanismo para a estabilidade da jurisprudência. Para se entender melhor a lógica do precedente judicial, este artigo realizou uma breve abordagem do assunto do ponto de vista histórico e de como se deu a influência do common law para a codificação dos precedentes no código de processo civil de 2015 (CPC/2015), além disso, foi feita uma análise de como os precedentes estão organizados no atual código, passando por conceitos da ratio decidendi, efeitos vinculantes, técnica de distinção e superação. Nesse momento de pandemia mundial, o aumento do número de ações vem crescendo em razão da instabilidade das relações jurídicas. Deste modo, neste artigo foram feitas reflexões de como os precedentes vinculantes podem representar um importante instrumento de pacificação social neste período que estamos vivenciando. Conclui-se que quanto mais uniforme a jurisprudência maior é a segurança jurídica, mais isonômicas são as decisões e maior é a celeridade processual. Nesse sentido, os precedentes vinculantes exercem papel de destaque.

Palavras chaves: Precedente judicial, ratio decidendi, distinguishing, técnica de superação e pandemia.

 

INTRODUÇÃO

Os precedentes judiciais são uma das grandes novidades trazidas pelo código de processo civil de 2015 e visam contribuir para o estabelecimento de uma jurisprudência cada vez mais uniforme. Dentro desse cenário, esse sistema torna-se um dos exemplos da evolução do sistema processual. Com o objetivo de trazer mais efetividade ao processo, o atual código se reinventa na proteção dos direitos materiais e institui novos instrumentos.

O que torna um passo à frente do passado e não ruptura. Um sistema processual efetivo que se harmonize com as garantias constitucionais é um sistema ideal que deve ser perseguido. Muda-se as necessidades de proteção aos direitos da sociedade e com ela muda-se o processo.

A pandemia representou uma grande mudança do cenário processual, que precisa atender uma profusão de ações, podendo se comparar com um dos cenários que mudou o código de processo civil, que foi a necessidade de celeridade. Se o judiciário já é abarrotado, imagina agora com a pandemia, que pressupõe aumento do número de ações em razão do abalo a direitos e a necessidade de sua proteção que muitas vezes não é possível resolver apenas entre as partes.

Diante disso, num período pós-pandemia os precedentes judiciais poderão ser um dos instrumentos para a estabilização do direito e da celeridade processual, o que demonstra a relevância desse instrumento atualmente. Se já o foi com a mudança do CPC em 2015, agora só reafirma a sua importância.

O presente artigo procura trazer uma reflexão, por meio de dados bibliográficos, o quanto os precedentes judiciais podem contribuir para gestão da crise processual no período pós-pandemia, apontando a sua origem e a influência sofrida sobre CPC até se chegar no modelo vigente.

1.     PRECEDENTES JUDICIAIS

1.1.          Breve Histórico

A valorização e ampliação do sistema de precedentes judiciais, especialmente dentro do sistema processual civil brasileiro, foi feita gradualmente em razão da necessidade de estabilização da jurisprudência e concretização dos valores constitucionais na vida dos cidadãos por meio do processo.

Para melhor compreensão da lógica adotada pelo código de processo civil de 2015 é necessário entender onde se deu a sua inspiração. O atual sistema de precedentes constitui clara influência do common law no direito brasileiro. Em razão disso, será feito um breve histórico deste sistema.

O sistema common law possui origem anglo-saxônico e influenciou a formação do ordenamento jurídico de vários países, dentre eles a Inglaterra onde teve a sua origem. Foi o direito inglês que serviu como modelo em que diversos direitos se inspiraram, pois nele criou-se a estrutura desse sistema, portanto convém embasar-se no direito inglês para o estudo da common law.

Esse sistema teve seu período de formação, comumente apontado pela doutrina, entre 1066 e o início da dinastia Tudor, em 1485 (MORETO, 2012, p.71). Com a conquista dos normandos em 1066, houve a centralização do governo na figura do rei, incluindo a administração da justiça, rompendo-se com a tradição anterior.

 No processo de centralização da justiça, foram desenvolvidos novos procedimentos jurídicos e, consequentemente, houve a formação do ordenamento jurídico inglês que seria aplicado a todos os cidadãos ingleses, o que explica a denominação common law como direito comum a todos. “Comum justamente porque se decidia de maneira centralizada pelas Cortes Reais de Justiça de Westminster” (BARBOZA, 2018, p. 4).

O direito inglês desenvolveu-se principalmente no campo processual, arquitetou-se gradativamente pelas decisões dos tribunais. Ensina Moreto:

 A educação jurídica do common law sempre foi centrada no estudo das decisões judiciais preexistentes, despontando daí seu caráter fundamentalmente prático. Não existem nesse direito regras materiais, mas técnica processuais, destinadas a pôr fim aos litígios (MORETO, 2012, p.72 e 73).

Na mesma lógica argumenta Barboza:

O direito inglês não é um direito acadêmico e, portanto, não tem princípios abstratos nem juristas teóricos; ao contrário, é um sistema de case-law, em que os juízes são práticos e cuja função é de aplicar a justiça e não alguma fórmula de direito preestabelecida (BARBOZA, 2018, p.7).

O cuidado do direito inglês sempre foi evitar decisões conflitantes daí a utilização do método case-law, entretanto, não foi dado, inicialmente, efeito vinculante, chamado de stare decisis, as decisões judiciais (precedente). Havia somente o costume de se respeitar as decisões da mesma corte ou das cortes hierarquicamente superiores. Ensina Moreto (2012, p. 75) que “isso só ocorreu no séc.XIX com o julgamento do caso Beamisch vs. Beamisch, restou estabelecido que a House of Lords estaria obrigada a acatar sua própria autoridade nos julgamentos”.

Alerta Vieira para que não se confunda case law e a força do stare decisis:

É imperioso que se perceba a distinção entre o método do case law e a força do stare decisis. O primeiro refere-se ao modo indutivo pelo qual se deu a formação do common law, estando presente, portanto, desde o seu surgimento. Já o stare decisis, por sua vez, relaciona-se à eficácia vinculante, tanto horizontal quanto verticalmente, que os precedentes assumem naquele modelo de Direitos, tendo sido formulada, desenvolvida e consagrada a partir da segunda metade do século XVIII. Verifica-se, então, que o case law existiu por vários séculos independentemente da existência do stare decisis, tendo inclusive, funcionado satisfatoriamente

É importante destacar que no direito inglês não são todas as partes de uma decisão judicial que terá efeito vinculante, mas apenas a chamada ratio decidendi que consiste no núcleo essencial do precedente ou motivos determinantes da decisão. As demais parcelas do julgado serão desprovidas de efeito vinculatório e são chamadas de obiter dictum.

Sendo as decisões judiciais fonte primária do direito common law, ressalta Barboza (2018, p.7) “a relevância do papel criador de seus juízes (judge-mad-law), dando-se reconhecimento à autoridade de seus precedentes”. Nesse sentido, o direito inglês contrapõe-se ao statute law, sendo a lei fonte apenas complementar para esse sistema, diferentemente, é a sua função para o sistema civil law, uma vez que, em tese, deve existir uma norma cabível para cada litígio.

Resumidamente, destaca Barboza algumas das principais características do sistema common law:

i) é um direito histórico, sem rupturas; ii) é um judge-made-law, em que a jurisprudência exerce papel de grande importância no sistema jurídico, portanto, suas regras são aquelas que se encontram na ratio decidendi das decisões dos Tribunais Superiores da Inglaterra; iii) é um direito Judiciário, pois além da sua praticidade também é destaque o papel criador dos seus juízes; iv) é um direito não codificado15; v) sofreu pouca influência do direito romanista (BARBOZA, 2018, p. 5 e 6).

Por outro lado, diz que, tradicionalmente, o sistema processual civil brasileiro é baseado na civil law, ou seja, tem a lei como principal fonte de direito. O juiz deve primar pela aplicação da lei e utilizará outros métodos para solucionar os conflitos como a analogia, princípios gerais do direito e costumes quando a lei for omissa.

Nesse sentido, ensina Vieira:

No common law, o stare decisis foi formulado para que se concretizasse, na tradição anglo-saxônica, a certeza do Direito, a tutela da segurança e o tratamento igualitário dos casos submetidos a julgamento. Estes valores também estiveram presentes no civil law, mas a sua implementação se deu de forma distinta, pela crença na completude do sistema, pelo movimento de codificação do Direito e pela consagração da ideia de que todos são iguais perante a lei. (VIEIRA, 2018, p. 43).

Em razão disso, infere-se que a jurisprudência exerce papel diferente nos dois sistemas. Enquanto no sistema jurídico common law a jurisprudência exerce papel principal, no sistema civil law ela vem ganhando mais evidência, especialmente, a partir da indispensável tarefa desempenhada pelo juiz na compreensão de todos os atos jurídicos a partir dos ditames da constituição, “o que atrai a concepção da jurisdição como função que cria o Direito, complementando a tarefa que se inicia pelas mãos do legislador” (Vieira, 2018, p.44).

Deste modo, o que se constata, hodiernamente, é que há uma aproximação entre esses dois sistemas com a inserção de institutos característicos de um sistema em outro.

Isso acontece com o sistema processual civil brasileiro, embora tipicamente romano-germânico baseado na civil law, sofre influência do sistema common law. Foram adaptados institutos próprios do sistema common law, tal como o sistema de precedentes, as particularidades políticas, sociais e culturais do direito processual civil brasileiro. Nota-se, portanto, que criamos um sistema de precedentes próprio e adequado com a civil law.

1.2. Os Precedentes Judiciais no Código de Processo Civil de 2015

            O termo precedente judicial não se confunde com jurisprudência e súmula, são noções distintas, embora intimamente ligadas. É importante tem em mente essa distinção, uma vez que, conforme alerta NEVES (2018, p.1389) “o novo código de processo civil se vale de forma constante das expressões ‘precedente’, ‘jurisprudência’ e ‘súmula’, nem sempre da forma mais técnica e adequada”.

            O precedente é a decisão judicial cujo sua base de formação tenha capacidade de ser diretriz para decisões futuras. Nesse sentido, conceitua NEVES:

Dessa forma, sempre que um órgão jurisdicional se valer de uma decisão previamente proferida para fundamentar sua decisão, empregando-a como base de tal julgamento, a decisão anteriormente prolatada será considerada um precedente. Registre-se nesse ponto que nem toda decisão, ainda que proferida pelo tribunal, é um precedente. Uma decisão que não transcender o caso concreto nunca será utilizada como razão de decidir de outro julgamento, de forma que não é considerada um Precedente. Por outro lado, uma decisão que se vale de um precedente como razão de decidir naturalmente não pode ser considerada um precedente (NEVES, 2018, p.1389 e 1390).

               Por outro lado, jurisprudência é um conjunto de decisões proferidas pelos Tribunais, sobre determinada matéria em um mesmo sentido. Taruffo ao diferenciar precedente de jurisprudência traz duas importantes distinções.

            A primeira distinção trata-se do ponto de vista quantitativo. Segundo ele, “quando se fala do precedente se faz normalmente referência a uma decisão relativa a um caso particular, enquanto que quando se fala da jurisprudência se pressupõe uma pluralidade de decisões relativas a vários e diversos casos concretos” (TARUFFO, 2011, p.2).

               A segunda distinção trata-se do ponto de vista qualitativo. Argumenta Taruffo (2011, p.2 e 3) que, “a estrutura fundamental do raciocínio que sustenta e aplica o precedente ao caso sucessivo é fundada na análise dos fatos. Já os textos que constituem a nossa jurisprudência não incluem, em regra, os fatos das decisões”.

            Ensina Didier (2016, p. 501) que “o enunciado de súmula é o texto que cristaliza a norma geral extraída, à luz de casos concretos, de outro texto (o texto legal, em sentido amplo)”. Conceitua, ainda, Câmara (2015, p. 429) “o enunciado de súmula é um extrato da jurisprudência dominante de um tribunal”.

            Por fim, nota-se que há um desenvolvimento: precedente -> jurisprudência -> súmula. Conforme Didier (2016, p.500), “a súmula é o enunciado normativo (texto) da ratio decidendi (norma geral) de uma jurisprudência dominante, que é a reiteração de um precedente”.

            Feita essas considerações iniciais, ao se comparar o antigo CPC/73 com o atual CPC/15 constata-se que a inclusão dos precedentes não é algo totalmente novo no direito processual civil, houve um crescente processo de valorização até se chegar ao atual código. Ensina Mello e Barroso:

O processo de valorização da jurisprudência no Brasil pode ser compreendido em três perspectivas ou etapas: i) o avanço do controle concentrado da constitucionalidade; ii) a valorização da jurisprudência por meio das normas infraconstitucionais que progressivamente alteraram o Código de Processo Civil de 1973 (CPC/1973); iii) a criação de um novo sistema de precedentes vinculantes no direito brasileiro, pelas normas integrantes da Lei nº 13.105/2015, nosso Novo Código de Processo Civil (CPC/2015). MELLO e BARROSO, 2017, p.7)

 Criaram-se mecanismos, no novo CPC, para evitar a dispersão excessiva da jurisprudência, que é um dos maiores problemas do nosso sistema processual. Ensina Gonçalves (2020, p. 1334) que no atual CPC “preocupou-se com a uniformização da jurisprudência, já que o aumento de decisões judiciais divergentes em casos semelhantes pode prejudicar a isonomia e a segurança jurídica”.

No mesmo sentido alerta Neves:

Se é verdade que o desrespeito pelos juízos inferiores de entendimentos já consolidados pelos tribunais gera a quebra da isonomia e a insegurança jurídica, tornando o processo uma verdadeira loteria judiciária, ainda mais grave é a instabilidade presente nos próprios tribunais quanto ao respeito à sua própria jurisprudência (NEVES, 2018, p.1.392.)

Daí extrai-se o comando do art. 926, caput do CPC/15: “Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”. Outro mecanismo cuja finalidade também é manter a uniformidade da jurisprudência são os precedentes vinculantes enunciados no art. 927 do CPC, que devem ser observados pelos juízes e pelos tribunais.

            Ademais, com base na exposição de motivos do atual CPC é possível perceber que os propósitos e os valores que levaram à criação de um novo sistema de precedentes vinculantes foram a segurança jurídica, a isonomia e a eficiência. “Proporcionar legislativamente melhores condições para operacionalizar formas de uniformização do entendimento dos Tribunais brasileiros acerca de teses jurídicas é concretizar, na vida da sociedade brasileira, os valores constitucionais” (exposição de motivos do novo CPC, 2015, p. 1 a 3).

Institutos do CPC/15 foram adequados à nova sistemática dos precedentes tais como: a improcedência liminar do pedido (art. 332), decidir monocraticamente um recurso (art. 932, IV e V) e o reexame necessário (art. 496, §4). Criou-se um sistema coerente para assegurar efetividade dos precedentes e dos valores que motivaram a sua implementação.

Deste modo, percebe-se, atualmente, a importância dos precedentes judiciais, uma vez que podem “gerar um processo mais célere, mais justo, porque mais rente as necessidades sociais e muito menos complexo” (exposição de motivos do CPC, 2015, p. 1).

1.3 Os precedentes vinculantes, sua eficácia e a sua ratio decidendi

Diferente do sistema common law que toda e qualquer decisão judicial pode se converter em um precedente vinculante, não são todos os precedentes judiciais no processo civil brasileiro que terão eficácia vinculante, mas apenas os elencados no art. 927: I) decisões do Supremo Tribunal Federal em controle de constitucionalidade; II) os enunciados de súmula vinculante; III) os acórdãos em incidentes de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recurso extraordinário e especial repetitivo; IV) os enunciados de súmula do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional e, por fim, V) a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados. Os demais terão eficácia apenas persuasiva.

Ensina Câmara:

Nos sistemas jurídicos vinculados à tradição de common law, quem diz que uma decisão judicial é precedente é o juiz do caso seguinte. (...) Apenas quando, posteriormente, surge um segundo caso cujas circunstâncias são análogas às do caso anterior é que o órgão jurisdicional a quem incumba a função de julgar este segundo caso afirmará que aquela primeira decisão é um precedente.

No direito processual civil brasileiro a situação é diferente. É que a lei já estipula, com antecedência, quais são as decisões judiciais que terão eficácia de precedente vinculante (...) pode-se mesmo dizer que tais pronunciamentos são "precedentes de propósito" ou “precedentes dolosos” (já que já que formados "com a intenção de serem precedentes vinculantes) (CÂMARA, 2015, p.437).

               Ter eficácia vinculante significa dizer que a “fundamentação de determinadas decisões judiciais tem o condão de vincular decisões posteriores, obrigando que os órgãos jurisdicionais adotem aquela mesma tese jurídica na sua fundamentação” (DIDIER, 2016, p.469). Somente se admite o afastamento do precedente em hipóteses excepcionais.

             O que vincula é a ratio decidendi e não toda a decisão. Tal como conceituada pelo sistema common law, a ratio decidendi é o núcleo do precedente, seus fundamentos determinantes, sendo justamente o que vincula. Diferencia-se da fundamentação obter dicta, que são argumentos acessórios de uma decisão sendo dispensável ao resultado do julgamento. Embora seja dispensável, ensina Didier (2016, p. 459) que “o obter dictum não é totalmente desprezível, pois pode sinalizar uma futura orientação do tribunal por exemplo”.

            Já a eficácia persuasiva os juízes subsequentes não estão obrigados a seguir o precedente anterior, sendo esse precedente utilizado como mecanismo de convencimento e persuasão do julgador do caso presente.

Sem entrar na discussão sobre a constitucionalidade do art. 927, há divergência doutrinária sobre a eficácia vinculante dos incisos IV e V do referido artigo, uma vez que esses incisos não teriam sua eficácia vinculante expressa em outra norma constitucional como os inciso I e II ou infraconstitucional como o inciso III. Entende a doutrina majoritária, no entanto, que “é suficiente o art. 927 para consagrar a eficácia vinculante aos precedentes e enunciados sumulares previstos em seus incisos” (NEVES, 2018, p. 1.397).

Entende Mello e Barroso (2017, p. 16 e 17) que na prática os enunciados da súmula simples da jurisprudência do STF e do STJ sobre matéria constitucional e infraconstitucional (inciso IV) e as orientações firmadas pelo plenário ou pelos órgãos especiais das cortes (inciso V) tenderá a funcionar como mera recomendação e terão eficácia normativa intermediária, dado que a sua inobservância não viabiliza o ajuizamento de reclamação, conforme o art. 988 do CPC/15. Diferente é o caso dos demais incisos, que poderá ser utilizado a reclamação em caso de sua não aplicação e terá eficácia normativa em sentido forte.

Outro ponto de destaque dos precedentes vinculantes é o seu dever de fundamentação pelo julgador, tanto para criar a ratio decidendi quanto para aplicar ao caso análogo.

Explica Mello e Barroso (2017, p.22) que “a ratio decidendi ou a tese é uma descrição do entendimento jurídico que serviu de base à decisão”. É ela que guiará as decisões futuras, daí a necessidade de que ela seja criada de forma indubitável para que o próximo julgador possa aplicá-la corretamente ao caso concreto.

Os mesmos autores ensinam ainda que a comprovação da ratio decidendi “presume a análise de alguns aspectos fundamentais: i) os fatos relevantes, ii) a questão jurídica posta em juízo iii) os fundamentos da decisão e iv) a solução determinada pela corte” (2017, p.22).

A decisão que aplica o precedente também deve ser devidamente fundamentada, já que o julgador deve examinar a adequação do caso concreto ao caso que deu origem ao precedente. Destaca Gonçalves (2020, p.1.337) os pontos que o julgador deve verificar: “a) se o caso sub judice é assemelhado ou se existe distinção entre a situação concreta e as que deram ensejo ao precedente e b) se o entendimento não ficou superado”.

Ademais, conforme o art. 927, § 1 do CPC/15 é dever do julgador pronunciar-se sobre a aplicação ou não de um precedente vinculante, mesmo que as partes não tenham pedido, sendo a decisão considerada omissa, nos termos do art. 1.022, § único do CPC/15, quando não houver sua manifestação. Antes de proferir sua decisão de ofício deve o julgador intimar as partes para sua manifestação na forma do art. 10 do CPC/15, sob pena de ferir o princípio do contraditório.

Argumenta Paschoal e Andreotti (2018, p. 58 e 59) que é por meio dessa fundamentação adequada que “as partes do processo terão subsídio para observar se existe ou não um caso de distinção (distinguishing) ou se ocorreu uma superação do precedente (overruling)”. É notório, portanto, a relevância da fundamentação de um precedente.

1.4 Exceções a aplicação do precedente vinculante e a técnica para superação de um precedente

distinguishing consiste em uma exceção a ratio decidendi de um precedente, já que a sua ocorrência acarreta a não aplicação do precedente vinculante. Ensina Didier:

 O distinguishing ocorre quando houver distinção entre o caso concreto (em julgamento) e o paradigma, seja porque não há coincidência entre os fatos fundamentais discutidos e aqueles que serviram de base à ratio decidendi (tese jurídica) constante no precedente, seja porque, a despeito de existir uma aproximação entre eles, alguma peculiaridade no caso em julgamento afasta a aplicação do precedente (DIDIER, 2016, p.504).

               O emprego da técnica de distinção é um dever do juiz, pois inerente a atividade jurisdicional de interpretação da lei e do precedente. Isso reforça a stare decisis (força vinculante) do precedente, já que “o torna menos rígido e permite o desenvolvimento do Direito, adequando o precedente à novas realidades ou situações daquela sociedade a que ele se dirige” (Vieira, 2018, p.131).

            Ensina Neves (2018, p. 1.409 e 1.410) que a aplicação dessa técnica deve ser moderada e não conforme a conveniência dos juízes que não querem aplicar os precedentes por considerá-los injustos ou equivocados, deve-se evitar assim desvirtuamento do sistema de precedentes.

            Adverte-se que a utilização do distinguishing não acarreta automaticamente a revogação do precedente, ele continua existindo podendo ser aplicado a outros casos que forem semelhantes. Pode ocorrer, no entanto, um enfraquecimento do precedente em razão das inúmeras vezes que foi submetido a distinção, aproximando-se da hipótese de superação (Vieira, 2018, p.132).

            Por outro lado, a técnica de superação pode ser dividida em duas formas: overruling e overriding. A overruling consiste na superação total do precedente. Já o overriding consiste na superação parcial do precedente. Conceitua Didier:

Overrruling é a técnica através da qual um precedente perde a sua força vinculante e é substituído (overruled) por outro precedente. O próprio tribunal, que firmou o precedente pode abandoná-lo em julgamento futuro, caracterizando o overruling (DIDIER, 2016, p.507 e 508).

 overriding quando o tribunal apenas limita o âmbito de incidência de um precedente, em função da superveniência de uma regra ou princípio legal. É uma espécie de revogação parcial (DIDIER, 2016, p.520 e 521).

No artigo 927, parágrafos segundo ao quarto dispõe o CPC do procedimento a ser adotado para superação do precedente no caso de alteração da tese jurídica adotada em enunciado de súmula e no caso de julgamento de casos repetitivos, não dispondo o procedimento para os outros casos de precedentes vinculantes. No entanto, os doutrinadores relatam que pode utilizar outros instrumentos processuais tais como: a lei 11.417/2006 para a revogação da súmula vinculante, o art. 986 para o IRDR e o regimento interno dos tribunais para a superação de tese fixada em julgamento de recurso especial e extraordinário.

            Tanto a técnica de distinção quanto a técnica de superação servem para renovar o direito evitando o seu engessamento. Nesse sentido, disserta Câmara (2015, p.438): “a superação evita o engessamento do Direito e reconhece que os precedentes são criados a partir de certas circunstâncias fáticas e jurídicas que precisam permanecer presentes para que eles possam continuar a ser aplicados”.

Ademais para aplicação da técnica de distinção ou superação, conforme visto no tópico anterior, é imprescindível uma fundamentação adequada, o que reafirma a importância dos princípios da segurança jurídica, contraditório, proteção à confiança e da decisão motivada.

2. REFLEXÕES SOBRE A IMPORTÂNCIA DOS PRECEDENTES JUDICIAIS NUM PERÍODO PÓS PANDEMIA

O sistema de precedentes vinculantes é um dos grandes exemplos da evolução do sistema. Ele foi constituído por uma inovação gradual do sistema anterior e veio com o propósito de manter a estabilidade da jurisprudência, um dos maiores desafios do nosso sistema processual.

É possível inferir que neste período de pandemia mundial as relações jurídicas sofreram certo impacto e se não puderem ser resolvidas por transação entre as partes, ocorrerá, consequentemente, um abarrotamento de ações no poder judiciário, uma vez que ele possui a função jurisdicional com o objetivo de alcançar a pacificação social. Como muito bem lembra D’avilla:

Se, em circunstâncias normais, a sobrecarga do Judiciário já era uma patologia que preocupava nosso ordenamento, o arrombo da pandemia mundial em função da COVID-19, anuncia que estamos às vésperas de um período de agravamento de nossas mazelas (D’AVILA, 2020, p1).

Essa instabilidade do direito em decorrência do período que estamos vivenciando, pode acarretar o surgimento de várias decisões conflitantes para os mesmos casos de dificuldade gerada pela pandemia, contudo, podemos dizer que na medida em que cresce essas decisões eleva-se a importância dos precedentes vinculantes como uma maneira de combatê-las.

Para se ter uma ideia, o número de ações judiciais e ato normativos do governo para enfrentamento da covid-19 amplia a cada dia. Segundo D’avilla (2020, p.5) “só perante o Supremo Tribunal Federal – STF, entre os dias 12 de março e 02 de abril de 2020, foram ajuizadas 44 ações apenas de controle concentrado de constitucionalidade”. Além disso, consoante os dados do Tribunal Superior do Trabalho (TST) as reclamações na justiça do trabalho relacionados à doença tiveram alta de 527% entre março e abril.

Daí pode se imaginar o quanto estamos suscetíveis ao aumento do número de decisões conflitantes sobre certo tema em todas as esferas do poder judiciário, além de decisões de enorme impacto social.

Paralelamente ao crescimento da importância dos precedentes judiciais, também é destaque os métodos de solução consensual de conflito tais como a conciliação e a mediação. Tanto os precedentes quanto a conciliação e mediação são ferramentas relevantes para a pacificação do ambiente jurídico durante e após a pandemia.

Os tribunais de justiça de todas as regiões do país, seguindo orientações do Conselho Nacional de Justiça - CNJ, têm implementado um sistema para gestão de crise. Cite-se, por exemplo, o Tribunal de Justiça de São Paulo - TJSP que criou um projeto-piloto inovador de conciliação e mediação pré-processuais para disputas empresariais decorrentes dos efeitos da Covid-19.

Deste modo, é o momento das partes cooperarem entre si para uma solução rápida do conflito. Os advogados, defensores públicos e promotores de justiça devem provocar o judiciário para a formação dos precedentes vinculantes, principalmente, o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas e o Incidente de Assunção de competência, pois podem dar equilíbrio ao sistema processual sem atingir as instâncias superiores.

A formação de precedentes, tanto os vinculantes como os persuasivos, também poderá auxiliar os magistrados na interpretação da lei, admitindo-se a aplicação uniforme da norma e assegurando-se a isonomia entre os jurisdicionados. Isso poderá ocorrer porque os juízes deverão avaliar os impactos que suas decisões podem gerar sobre a realidade vivenciada e utilizar a lei ou precedentes como base de sua fundamentação.

O simples fato de existir uma pandemia não autoriza o juiz a fazer alterações desarrazoadas de direitos ou cláusulas de um contrato. É preciso evitar o subjetivismo exacerbado dos julgadores para não ocorrer o aumento de decisões desiguais para um mesmo caso.

Do mesmo modo, o fato de existir a pandemia é essencial que o julgador faça uma análise criteriosa sob cada caso para realizar uma distinção adequada (distinguishing). Daí a importância de um precedente vinculante devidamente fundamentado, conforme já relatado em tópicos anteriores.

A partir do momento que a jurisprudência se torna uniforme e estável desestimula a judicialização, já que as partes irão ponderar cada vez mais os ônus e bônus de uma ação supérflua. Os precedentes vinculantes podem facilitar nessa função.

Por fim, podemos dizer que os precedentes vinculantes assumem papel significativo para a gestão de crise, uma vez que ele pode proporcionar maior segurança jurídica, isonomia e eficiência. Tudo que o sistema processual civil almeja diante da ampliação do número de ações em razão da pandemia.

 

CONCLUSÃO

          Tradicionalmente, o nosso sistema jurídico processual civil é baseado na civil law de origem romano-germânica, tendo a lei como fundamento. Por outro lado, no sistema common law o direito sempre foi construído judicialmente, de onde vem o seu caráter prático. A jurisprudência assume papel diferente dentro desses dois sistemas, uma vez que foram formados de maneira praticamente opostas.

            Apesar de baseado na civil law, é possível constatar que o sistema processual civil brasileiro sofre influência do common law, já que aderiu a institutos próprios deste sistema como por exemplo os precedentes vinculantes. Há, hodiernamente, mais uma aproximação entre esses dois sistemas do que se mantiveram puros, conforme sua origem.

            A jurisprudência vem ganhando cada vez mais destaque e assumiu extraordinária importância com o atual código de processo civil, que determina aos tribunais o dever de uniformização da jurisprudência e que a mantenham estável, íntegra e coerente, além da codificação do sistema de precedentes vinculantes. Podemos dizer que o novo código ao inserir o sistema de precedentes vinculantes fez uma adaptação a realidade do sistema brasileiro.

Os precedentes vinculantes não é algo totalmente novo no CPC, ele é fruto de um crescente processo de valorização. Diante da necessidade de uniformização da jurisprudência, os precedentes são mais um instrumento para o combate a insegurança jurídica que a jurisprudência não uniforme pode gerar.

Eles proporcionam maior estabilidade da jurisprudência, pois evitam posicionamentos conflitantes as chamadas decisões loterias, decisões desiguais para um mesmo caso e dão maior celeridade do poder judiciário. Por esses motivos podemos dizer que o atual CPC está cada vez mais consentâneo aos valores constitucionais, pois concretiza por meio do processo os princípios da segurança jurídica, isonomia e da eficiência.

Alguns doutrinadores criticam o sistema de precedentes, porque acreditam que esse sistema pode causar o engessamento do direito. Nota-se, entretanto, que na prática isso não ocorre, pois há mecanismos para a renovação do direito como técnica de distinção e as técnicas de superação: overruling e overriding.

Ademais, diante do cenário de pandemia mundial que estamos vivenciando, os precedentes vinculantes assumem papel de grande relevância para a pacificação social. O excesso de ações judiciais já é uma realidade dentro do poder judiciário e, consequentemente, aumenta risco do número de decisões diferentes para um mesmo caso.

A estabilidade da jurisprudência que os precedentes judiciais podem proporcionar deve ser levado em consideração, portanto, é o momento para utilizar de todas as ferramentas possíveis de combate ao excesso de ações e a insegurança jurídica. A ação conjunta para minimizar os efeitos da pandemia também é importante, sendo necessário que as partes cooperem cada vez mais para uma solução rápida do conflito.

Do mesmo modo, os juízes devem se atentar ao seu dever de fundamentar suas decisões adequadamente, conforme determina o artigo 489, parágrafo 1, inciso V do CPC. Decisões incoerentes podem agravar ainda mais a instabilidade da jurisprudência fazendo com que a utilização dos precedentes se torne ineficaz. Além disso, se houver algum precedente é dever do julgador pronunciar sobre a sua aplicação ou não, sendo a sua decisão considerada omissa quando não houver a sua manifestação (art. 927, § 1 e art. 1.022, parágrafo único do CPC)

Desta forma, podemos concluir que os precedentes vinculantes são uma das mais importantes novidades trazidas pelo CPC/15. Em um período pós-pandemia serão um instrumento relevante, por todos os motivos já citados, para se obter a pacificação social.

 

 

 REFERÊNCIAS

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Tainara Souza Amaral

Tainara Souza Amaral

Advogada. Especialista em direito civil e processo civil pelo proordem. E-mail: tainarasoouza@hotmail.com

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