Aviso de Cookies

Usamos cookies para otimizar as funcionalidades do site, personalizar o conteúdo proposto e dar a você a melhor experiência possível. Saiba mais em nossa Política de Cookie e Política de Privacidade

NEGÓCIOS JURÍDICOS ENTRE ASCENDENTE E DESCENDENTE

NEGÓCIOS JURÍDICOS ENTRE ASCENDENTE E DESCENDENTE

 

 

 

 

Yasmine Alves Batista[1] 

Heloanny de Freitas Brandão[2] 

Jéssica Lorrane da Silva[3]

 

  

RESUMO

Negócios fazem parte da sociedade atual, seja entre grandes empresas, seja entre pessoas, a todo momento pode-se observar transações acontecendo. Todavia, no Brasil, historicamente há o receio em se realizar um negócio jurídico, seja de bem móvel ou imóvel, entre ascendente e descendente, principalmente por que a norma atual que regulamenta o instituto, possui, majoritariamente considerado, erro técnico. Assim, o presente artigo visa discorrer sobre as permissivas legais para efetuar transações entre pais e filhos, sem que para isso seja objeto de anulação, bem como abordar sobre a validade e eficácia dos negócios jurídicos entre ascendentes e descendentes e suas possibilidades. O tema é bastante polêmico, pois, sendo uma norma considerada empírica, o Código Civil deveria ajustar com a realidade praticada na sociedade, razão pelo qual há necessidade de adequação técnica, conforme fundamentado por muitos no ordenamento jurídico, bem como para efetivar a segurança jurídica que naturalmente os negócios jurídicos devem produzir.

Palavras chaves: Negócios Jurídicos. Ascendente. Descendente. Possibilidades.

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por objetivo deslindar os aspectos relevantes que possibilitam e impossibilitam que o negócio jurídico entre ascendente e descendente se torne perfeito e acabado, como também quais são os possíveis reflexos na sucessão de ambas as partes no negócio.

Com isso, pontos importantes são levantados sobre o tema, no sentido de apontar qual é o objetivo do artigo 496 do Código Civil, ao regimentar a compra e venda entre ascendentes e descendentes com requisitos e observações impostas, além dos aspectos polêmicos e contraditórios que causam celeuma no ordenamento jurídico.

A legislação vigente é capaz de resguardar o interesse de ambas as partes, sem que para isso haja intervenção do Poder Judiciário ou que deveras o negócio realizado não seja desfeito, ainda, é possível garantir que este negócio não reflita direta ou indiretamente na sucessão de qualquer das partes.

Nesta senda, é preciso entender como a legislação correspondente aos negócios jurídicos se posiciona para que essas transações se consagrem perante todos, e, principalmente, como lei entre as partes, fazendo com que seus efeitos não cessem, senão previsão legal ou contratual expressa para esse fim.

Logo, também é necessário aprofundar na matéria para saber quais são as características fundamentais para que o negócio jurídico entre pais e filhos, sejam válidos e capazes de produzirem seus efeitos, até mesmo após a abertura da sucessão de qualquer das partes.

Outro ponto importante, é a compreensão da nulidade e anulabilidade dos negócios jurídicos entre ascendente e descendente, sendo indispensável a consciência do marco inicial para a contagem dos prazos para anulação do respectivo negócio jurídico. Ainda, compreender se há possibilidade de no inventário, dispensar a colação dos bens objeto de negócio jurídico entre ascendente e descendente, bem como quais negócios jurídicos necessariamente devem fazer parte colação, quando aberta a sucessão.

Adiante, é preciso evidenciar se a legislação atual representa a realidade vivenciada pela sociedade, bem como se há algo a ser alterado na redação dos artigos que regulamentam a compra e venda entre ascendente e descendente, observando por fim, se a mesma norma serve tanto para bens móveis quanto para bens imóveis.

Por fim, destacar qual a melhor maneira de garantir que a compra e venda entre ascendentes e descendentes alcance a finalidade pretendida, sem que para isso as partes tenham incerteza da eficácia do negócio ao longo do tempo, promovendo assim a segurança jurídica do negócio jurídico.

O desenvolvimento do tema será fundamentado com os entendimentos sufragados no ordenamento jurídico por doutrinadores consagrados, bem como debates e decisões jurisprudenciais que regulam o instituto no caso concreto, com exemplos corriqueiros trazidos pela sociedade ao longo do tempo.

  1. 1.      VALIDADE E EFICÁCIA DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS

O negócio jurídico pode ser conceituado como uma declaração de vontade que geram efeitos extintivos, criativos ou modificativos de um objeto lícito, possível, determinado ou não, sendo regulamentado pela lei.

Para Fabio Ulhoa Coelho (2012), o negócio jurídico pode ser conceituado da seguinte forma:

Negócios jurídicos são declarações de vontade destinadas a produzir os efeitos pretendidos pelos sujeitos que as emitem. Para que o objetivo perseguido pelo declarante seja alcançado, o negócio jurídico deve ostentar atributo, que varia segundo uma circunstância fundamental. Por outras palavras, quando não há conflito de interesses entre as partes do negócio jurídico (ou entre a parte do negócio jurídico unilateral e os envolvidos, ou mesmo entre estes últimos), a eficácia deste importa a realização dos efeitos objetivados. Quando há tal conflito de interesses, porém, o atributo que garante a realização dos efeitos perseguidos pela parte é a validade do negócio jurídico. 

 Assim, pode-se destacar que os negócios jurídicos revelam em essência, assim como a legislação atual, os elementos base que o determinam conforme aponta Pontes de Miranda: a manifestação de vontade, objeto e forma.

Contudo, apesar de ser aceito por grande parte dos operadores do direito e até mesmo pela legislação, tais elementos base tem um ponto central do negócio: a vontade, e, isso gerou uma celeuma que ainda é objeto de discussão doutrinária.

A crítica recai no sentido de que existem outros elementos importantes, assim como outras circunstâncias que devem ser observadas como essenciais para o negócio jurídico e, não somente uma base elementar como descreve Pontes de Miranda.

Assim, surgiram outras teorias e defensores de diversas outros argumentos a acrescentar sobre o conceito de negócio jurídico, porém, o presente tema vai de encontro com a teoria da “escada ponteana”, onde se tem o plano da existência, validade e eficácia do negócio jurídico, sendo que se reserva ao momento destacar a validade e eficácia, partindo do pressuposto de que o negócio jurídico já cumpriu os requisitos no plano da existência.

Sendo assim, a validade do negócio jurídico é um dos quantitativos que se procedeu adequado aos requisitos da lei, conforme dispõe o artigo 104 do Código Civil. O pressuposto da validade requer circunstâncias necessárias para produzir seus efeitos próprios, exercendo seu propósito típico observado o sujeito capaz, o objeto lícito e a ordenação do sujeito em relação ao objeto.

Dessa forma, assim destaca Antônio Junqueira de Azevedo (2002) acerca da validade dos negócios jurídicos:

O plano da validade é próprio do negócio jurídico. É em virtude dele que a categoria “negócio jurídico” encontra plena justificação teórica. O papel maior ou menor da vontade, a causa, os limites da autonomia privada quanto à forma e quanto ao objeto são algumas das questões que se põem, quando se trata de validade do negócio jurídico, e que, sendo peculiares dele, fazem com que ele mereça um tratamento especial, diante dos outros fatos jurídicos.

[...]

A validade é, pois, a qualidade que o negócio deve ter ao entrar no mundo jurídico, consistente em estar de acordo com as regras jurídicas (“ser regular”). Validade é, como o sufixo da palavra indica, qualidade de um negócio existente. “Válido” é adjetivo com que se qualifica o negócio jurídico formado de acordo com as regras jurídicas.

Pode-se afirmar que a validade não comporta espécies tal qual a invalidade, que pode ser dividida em nula e anulável.

Contudo, deve-se observar os requisitos legais para que o negócio jurídico se torne válido, conforme bem dispõe o artigo 104 do Código Civil:

Art. 104. A validade do negócio jurídico requer:

I - agente capaz;

II - objeto lícito, possível, determinado ou determinável;

III - forma prescrita ou não defesa em lei.

Portanto, no plano da validade, preenchido os requisitos legais, o negócio jurídico está apto a produzir seus efeitos, sejam imediatos ou não, nos casos de negócios jurídicos condicionais, ou por tempo determinado, nos casos de negócios jurídicos a termo.

Por outro lado, Fábio Ulhoa Coelho (2012) pondera sobre a questão da invalidade do negócio jurídico:

Nenhum negócio é inválido, por mais desobedecidas que tenham sido as normas jurídicas sobre a matéria, antes que o juiz decida que ele o é. Nesse aspecto, não existem diferenças entre os graus de invalidade do negócio jurídico. Tanto na hipótese de nulidade, como na de anulabilidade, a invalidação depende necessariamente de processo judicial. Outro aspecto comum aos dois graus de invalidade diz respeito à contemporaneidade das causas. Em ambas, a causa de invalidação existe ao tempo da constituição do negócio jurídico (Lopes, 1962:504), Nenhum fato posterior à constituição induz à invalidade do negócio. Pode, se tanto, implicar sua desconstituição ou a suspensão dos efeitos.

Nesta senda, a rigor, a diferença do resultado decorrente da anulação ou da anulabilidade do negócio diz a respeito da opção legislativa, já que, o legislador, observando a necessidade da proteção das vontades das partes, bem como as consequências de se desfazer um negócio jurídico, estabeleceu critérios e regras próprias para cada situação.

Para além dos requisitos legais, há de se observar a vontade das partes, bem como o livre consentimento de ambas no sentido de qual é o intuito da celebração do negócio, bem como a finalidade a que se pretende.

Renan Lotufo (2004) explica que “a declaração de vontade é uma manifestação consciente de vontade emitida, por um sujeito de direito”, assim pode-se entender o plano da eficácia dos negócios jurídicos, levando em consideração que o negócio já está apto para tanto.

O mesmo autor explica, pormenorizadamente a declaração de vontade face aos negócios jurídicos da seguinte forma:

A declaração da vontade é fruto de um processo de formação que se inicia no íntimo das pessoas, até que, dada por estruturada intimamente, é emitida, exteriorizada. Deve, pois, corresponder ao que efetivamente se deseja, deve ser uma vontade consciente. Há, ainda, que se atentar para a liberdade da formação da vontade, ou seja, que o procedimento todo seja decorrente de livre manifestação do pensamento individual, uma manifestação não viciada. Mas, no âmbito do Direito contemporâneo, há um elemento que deve sempre estar presente: a boa-fé. A boa-fé há que reger o mundo do negócio jurídico. Portanto, desde o início da formação da vontade, é necessário que a boa-fé esteja presente, que se mantenha na sequência, ou seja, mesmo depois de emitidas a declaração e a recepção, e permaneça até depois da execução do próprio negócio. A boa-fé aqui referida é a que se denomina boa-fé objetiva.

A eficácia, revela, pois, a geração de efeitos jurídicos almejados pelas partes, de modo que um negócio eficaz é aquele que produz efeitos, ou seja, aquele que alterou a relação jurídica quando da declaração de vontade das partes.

Assim, o plano da eficácia demonstra que o negócio jurídico alcançou os objetivos desejados pelas partes, indicando os efeitos. Percebe-se que apesar do plano da validade ser o mais complexo do negócio jurídico, é no plano da eficácia que há percepção real e tangível do contrato celebrado, pois as partes realizam o negócio jurídico com o intuito de obter os resultados desse contrato.

Nesta senda, assim define Fabio Ulhoa Coelho (2012), sobre a eficácia do negócio jurídico:

O negócio jurídico é eficaz quando, independentemente de sua validade, é cumprido por completo pelas partes. Os objetivos que motivaram os sujeitos de direito a praticarem o negócio jurídico realizam-se em virtude de atos espontâneos deles, no cumprimento exato de tudo quanto havia sido objeto de declaração. Seja porque consideram importante manter a palavra dada em quaisquer circunstâncias (razões éticas), seja porque identificam no cumprimento da declaração anteriormente expedida a melhor alternativa aos seus interesses atuais (razões econômicas), as partes levam a efeito o negócio jurídico tal como previsto em sua constituição.

                   Deve-se, portanto, desassociar a ideia de que a eficácia representa simetria com o conteúdo contratual, pois haverá situações na quais os efeitos serão divergentes daqueles previstos em contrato.

Assim adverte o doutrinador Antônio Junqueira de Azevedo (2002):

O terceiro e último plano em que a mente humana deve projetar o negócio jurídico para examiná-lo é o plano da eficácia. Nesse plano, não se trata, naturalmente, de toda e qualquer possível eficácia prática do negócio, mas sim, tão só, da sua eficácia jurídica e, especialmente, da sua eficácia própria ou típica, isto é, da eficácia referente aos efeitos manifestados como queridos. Feita essa advertência preliminar, e antes de tratarmos da situação normal, que é a da eficácia dos atos válidos, lembramos duas situações excepcionais: a eficácia do nulo e a ineficácia do válido. Ambas são, a nosso ver, provas cabais de que não se pode confundir válido com eficaz e nulo com ineficaz; não só há o ato válido ineficaz como, também, o nulo eficaz. 

Portanto, é possível um negócio jurídico válido e ineficaz, bem como um negócio jurídico inválido e eficaz, isso se dá pelo fato de o plano da validade não interfere no plano da eficácia, uma vez que os efeitos desejados não estão diretamente vinculados às cláusulas contratuais, tampouco à verificação do contrato perante o ordenamento jurídico.

Em resumo, a diferença entre os negócios jurídicos inválidos e aqueles ineficazes se dá pelo fato de que ao negócio inválido não atende todos os requisitos elementares essenciais para se tornar válido, já um negócio ineficaz é resultado do que dispõe a lei ou da ideia social que leva em consideração dois fatores: a atividade prática do negócio e os limites da autonomia privada perante as próprias partes.

  1. 2.      OBJETIVOS E PONDERAÇÕES DO ARTIGO 496 DO CÓDIGO CIVIL

O Código Civil de 2002, em seu artigo 496, levou a cabo a polêmica sobre a nulidade de venda entre ascendente e descendente. Todavia, o assunto ainda merece considerações, especialmente sobre divergências na própria redação, bem como contradição técnica com outros artigos.

Art. 496. É anulável a venda de ascendente a descendente, salvo se os outros descendentes e o cônjuge do alienante expressamente houverem consentido.

Parágrafo único. Em ambos os casos, dispensa-se o consentimento do cônjuge se o regime de bens for o da separação obrigatória. 

A celeuma na doutrina e jurisprudência sobre o artigo 1.132 do Código Civil de 1916, se dava no sentido de que a venda de ascendente e descendente, sem a devida autorização dos outros irmãos e cônjuge era nula ou anulável.

Os juristas Jones Figueirêdo e Mario Luiz Delgado (2005), que participaram da elaboração do atual Código Civil, assim demonstraram a significativa mudança:

[...]no que se refere ao contrato de compra e venda feita por ascendente a descendente, torna-se ele suscetível de anulabilidade, não mais se podendo falar de nulidade. Esta, a significativa inovação. O dispositivo espanca a vacilação então dominante na doutrina, diante do preceituado pelo art. 1.132 do CC/1916, tornando defeso que os ascendentes pudessem vender aos descendentes, sem que os outros descendentes expressamente consentissem. A referência expressa à anulabilidade contida na nova norma encerra, por definitivo, dissenso jurisprudencial acerca das exatas repercussões à validade do negócio jurídico, quando superada por decisões recentes do STJ, a Súmula 494 do STF. 

Portanto, com a nova redação, o que dispunha o artigo 1.132 do Código Civil de 1916, o atual artigo 496, claramente aponta que será anulável a venda de ascendente para descendente sem o consentimento dos demais descendentes e cônjuge, tratando-se, pois, de nulidade relativa.

Obviamente o objetivo do disposto no artigo 496 do Código Civil é proteger a legítima dos demais descendentes e herdeiros legais, condicionando a venda entre pai e filho, ao consentimento dos demais descendentes, bem como do cônjuge, salvo se estiver sob o regime de bens da separação obrigatória.

Com isso, evita-se o chamado negócio jurídico simulado, pois mesmo que cumpridos os requisitos de uma compra e venda, por exemplo, em essência aquele negócio entre ascendente e descendente poderia ser uma doação, prejudicando a legítima dos demais herdeiros legais.

O autor Marco Aurélio Bezerra de Melo (2019) explica de forma clara, quais são os objetivos do artigo 496 do Código Civil ao condicionar compra e venda entre ascendentes e descendentes:

O artigo em comento tem por objetivo resguardar a legítima dos herdeiros necessários, pois com a necessidade de anuência destes há uma fiscalização prévia que poderá evitar demandas futuras que se verificariam após a morte do doador. Para entender o fundamento da anulabilidade necessitamos mergulhar, ainda que na parte rasa desse oceano, nos meandros do Direito das Sucessões, notadamente nos artigos 1.845 e 1.846 do Código Civil, os quais estabelecem, respectivamente, que são herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge e que pertencem a estes, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima, da qual somente podem ser privados pelo instituto da deserdação. Pudesse o ascendente vender ao descendente sem o consentimento dos demais e estaria franqueada e facilitada a possibilidade de simulação de uma doação travestida documentalmente de compra e venda, contemplando determinado herdeiro necessário em detrimento de outro. Isso porque se efetivamente se tratasse de uma doação, esta, em regra, seria considerada adiantamento de legítima (art. 544 do CC) e o herdeiro contemplado estaria obrigado a trazer à colação o que recebeu em vida de seu ascendente para o fim de igualar as legítimas e conferir o valor das doações recebidas, sob pena de responder pelas sanções da sonegação, conforme prescreve o artigo 2.002 do Código Civil.

Assim, conforme disposto no parágrafo único do referido artigo, não é necessária autorização do cônjuge no caso de o casal estar sob o regime de separação obrigatória de bens, dispensando-se assim o consentimento deste para que a compra e venda entre ascendente e descendente seja suscitada anulabilidade por esse motivo.

Todavia, o jurista Flávio Tartuce (2019) discorda do disposto no parágrafo único, por haver erro técnico na redação do dispositivo, por erro na tramitação legislativa, motivo pelo qual argumenta que deve haver nova alteração no texto para que não induza o jurisdicionado a erro:

Como tenho sustentado há tempos, a norma necessita de reparos técnicos, o que é objeto de projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados, de número 4.639/2019, de autoria do Deputado Carlos Bezerra. A proposição visa retirar a expressão “em ambos os casos”, que consta do parágrafo único do art. 496 do Código Civil e que ali permaneceu por erro de tramitação legislativa. Como consta da projeção, “o artigo 496 do novo Código Civil, cujo caput corresponde basicamente ao artigo 1.132 do Código Civil anterior, proíbe a venda de bens de ascendente a descendente, salvo nas condições que especifica. Durante a tramitação do projeto, houve momento em que se proibiu, também, a venda de descendente a ascendente. Nesse período, surgiu o parágrafo único do artigo, que especifica uma exceção à proibição. No curso regular da tramitação legislativa, a proibição da segunda hipótese de venda, de descendente para ascendente, foi derrubada. No entanto, não se atualizou a redação do parágrafo único, o que procuramos fazer agora”.

Outro ponto a se destacar no parágrafo único do artigo 496, é a menção do regime de separação obrigatória de bens, haja vista na visão de Flávio Tartuce (2019), deveria constar a separação convencional de bens, já que esta modalidade de regime de bens tem origem em pacto antenupcial, e assim deduz:

Isso porque, no regime da separação obrigatória de bens, alguns bens se comunicam, por força da antiga Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal, que ainda vem sendo aplicada pelos nossos Tribunais, notadamente pelo Superior Tribunal de Justiça. Conforme essa ementa jurisprudencial consolidada, “no regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento”. E, conforme um dos últimos arestos do STJ a respeito dessa temática, determinante na interpretação da sumular: “nos moldes do art. 1.641, II, do Código Civil de 2002, ao casamento contraído sob causa suspensiva, impõe-se o regime da separação obrigatória de bens. No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento, desde que comprovado o esforço comum para sua aquisição. Releitura da antiga Súmula 377/STF (No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento), editada com o intuito de interpretar o art. 259 do CC/1916, ainda na época em que cabia à Suprema Corte decidir em última instância acerca da interpretação da legislação federal, mister que hoje cabe ao Superior Tribunal de Justiça” (STJ, EREsp 1.623.858/MG, Segunda Seção, Rel. Min. Lázaro Guimarães (Desembargador convocado do TRF 5ª Região), j. 23/05/2018, DJe 30/05/2018).

Pela interpretação da súmula 377, o regime de separação obrigatória de bens, aqueles bens adquiridos na constância do casamento irão se comunicar quando da separação ou sucessão, assim, não há se falar em dispensa de autorização do cônjuge submetidos a esse regime, gerando assim outro erro na redação do parágrafo único.

Dessa forma, a redação do parágrafo único do artigo 496 do Código Civil, deveria constar que a desnecessidade de autorização do cônjuge, é daqueles sob o regime de separação convencional de bens, por decorrer de pacto antenupcial, e assim nesse caso, nenhum bem se comunicará tanto no divórcio quanto na sucessão.

Nesse sentido, assim explica o jurista Flávio Tartuce (2019):

Interessante confrontar o parágrafo único do art. 496 CC que excepciona o regime da separação obrigatória (de origem legal), com o art. 1.647, I, também do CC, que trata da necessidade de outorga conjugal para a venda de imóvel a terceiro, sob pena de anulabilidade (art. 1.649). Isso porque o art. 1.647 dispensa a dita autorização se o regime entre os cônjuges for o da separação absoluta. Mas o que seria separação absoluta? Entendemos que a separação absoluta é apenas a separação convencional, pois continua sendo aplicável a Súmula 377 do STF. Por essa súmula, no regime da separação legal ou obrigatória comunicam-se os bens havidos pelos cônjuges durante o casamento pelo esforço comum, afirmação que restou pacificada no âmbito do Superior Tribunal de Justiça em 2018 (EREsp 1.623.858/MG, 2.ª Seção, Rel. Min. Lázaro Guimarães (Desembargador convocado do TRF 5.ª Região), j. 23.05.2018, DJe 30.05.2018).Em síntese, o regime da separação legal ou obrigatória não constitui um regime de separação absoluta, uma vez que alguns bens se comunicam. Em outras palavras, a outorga conjugal é dispensada apenas se o regime de separação de bens for estipulado de forma convencional, por pacto antenupcial.

Diante disso, é possível perceber também, do ponto de vista técnico, sendo bastante detalhista, que há contradição no próprio Código Civil, pois quando a norma disposta no artigo 496, tem por objetivo evitar a simulação no negócio jurídico entre ascendente e descendente, traz como penalidade a nulidade relativa, sendo que, em se tratando de negócio jurídico simulado, conforme dispõe o artigo 167 do Código Civil, a penalidade é a nulidade absoluta.

Porém, apegar-se aos termos técnicos a esse ponto, indubitavelmente é desnecessário, pois entraria em conflito com a construção histórica da doutrina e jurisprudência sem acrescentar fundamentos e solução para os termos atualmente utilizados, ainda, recairia na celeuma do antigo artigo 1.132 do Código Civil de 1916, sobre entender se a venda entre ascendente e descendente era nula ou anulável.

Outrossim, repise-se, apesar de o artigo 496 estar inserido no capítulo que rege os contratos e negócios jurídicos, interessa diretamente ao ramo do Direito de Família e das Sucessões, inclusive, sendo mais um apontamento a ser destacado.

Assim, se faz necessário a adaptação do parágrafo único do artigo 496 ao artigo 1.647, ambos do Código Civil, para que não pairem dúvidas sobre a separação absoluta mencionada, quanto à desnecessidade de autorização do cônjuge, vez que deve ser dispensada somente se o regime de bens for o da separação convencional.

  1. 3.      ANULABILIDADE DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS ENTRE ASCENDENTE E DESCENDENTE

De toda sorte, embora os requisitos do artigo 496 do Código Civil sejam burocráticos, há possibilidade de realizar compra e venda ou qualquer outro negócio jurídico entre ascendente e descendente de forma perfeita e acabada, se observado os requisitos legais.

O primeiro ponto a ser compreendido, é que a imposição do referido artigo se refere tanto a bens móveis quanto a bens imóveis, embora a norma não seja específica nessa questão.

Segundo, deve-se atentar que a não observância do dispositivo pode ocasionar a anulação da compra e venda.

Logo, é imprescindível a percepção quanto aos prazos para anular os negócios jurídicos em espécies, pois para cada negócio terá uma norma com o prazo correspondente, como por exemplo a compra e venda entre ascendente e descendente, que por sua vez se trata de ato anulável, todavia não determina prazo para desfazê-lo, assim será de dois anos o prazo para anulação.

Isso porque, assim dispõe ao artigo 179 do Código Civil: “Quando a lei dispuser que determinado ato é anulável, sem estabelecer prazo para pleitear-se a anulação, será este de dois anos, a contar da data da conclusão do ato”.

Assim, quando o artigo 496 do Código Civil determina que a compra e venda entre ascendente e descendente é anulável e não define o prazo para anulação, o prazo aplicável é aquele disposto no artigo 179.

Por certo que para cada negócio jurídico anulável haverá um prazo específico para tal, por essa razão assume importância entender o marco inicial da contagem desses prazos, já que se tratando de ato anulável uma das consequências é a convalidação pelo tempo.

Em se tratando de anulação de contrato de compra e venda entre vivos, havendo a obrigatoriedade de registro público, o prazo será contado da data do respectivo registro, e assim, não há se falar em termo inicial contado da morte do alienante, uma vez que está relacionado ao negócio entre pessoas vivas. Assim, arremata-se o exposto, por se tratar de compra e venda entre ascendente e descendente, o prazo para os demais herdeiros necessários (descendentes e cônjuge) requererem anulação do alusivo negócio jurídico, terá início a partir do registro do contrato de compra e venda no cartório competente.

Dessa forma, havendo a obrigatoriedade de registro público da compra e venda, a data do registro é o marco inicial para contagem do prazo decadencial de dois anos para anular, bem como pode-se afirmar que tal marco inicial servirá também para as doações de bens imóveis.

Por outro lado, não havendo registro público o início da contagem será a partir da data da conclusão do ato, conforme dispõe artigo 179 do Código Civil.

Destarte, é certo que essa é a regra geral disposta no artigo 179 do Código Civil, com entendimento sufragado no ordenamento jurídico, contudo, merece devida atenção as exceções e singularidades de alguns negócios jurídicos, bem como aqueles chamados defeitos do negócio jurídico relacionados a atos de incapazes, coação, erro, dolo, lesão, estado de perigo ou fraude contra credores.

Isso quer dizer que para os demais negócios jurídicos a anulação será regida pelos dispositivos normativos correspondentes, por exemplo na doação inoficiosa, que é aquela que atinge o patrimônio não disponível, o prazo para anulação será prescricional de dez anos, conforme entendimento consolidado jurisprudencial:

AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE DOAÇÃO INOFICIOSA. 1. PRESCRIÇÃO DECENAL. ART. 205 DO CC. SÚMULA 83/STJ. 2. BENEFICIÁRIOS. LEGITIMIDADE PASSIVA. PRECEDENTE. 3. AGRAVO CONHECIDO PARA NÃO CONHECER DO RECURSO ESPECIAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 1.158.082 - SC (2017/0211709-9) RELATOR: MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE. Publicado em 02/02/2018.

A doação inoficiosa é tratada no Código Civil de 2002 no art. 549, que replicou a redação contida no art. 1.176 do Código Civil de 1916, dispondo que “nula é também a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento”.

 Embora o legislador ordinário não tenha conceituado o instituto, deve-se entender como doação inoficiosa, nas palavras do Ministro Moura Ribeiro que se trata da “liberalidade que ultrapassa a parte que o doador poderia dispor em testamento, atingindo a legítima do herdeiro necessário”.

Ainda sobre o tema doação inoficiosa, Nelson Rosenvald (2015) diz que a doação inoficiosa é caracterizada pela prática de uma liberalidade, ultrapassando a metade disponível do patrimônio líquido do doador, ao tempo da prática do ato. Todavia, há de ser considerada a autonomia da vontade privada, que assim explica: “[...] autonomia privada é explicitada pela possibilidade de o doador determinar, livremente, o destino da metade disponível do seu patrimônio[...]”.

Nesta senda, o entendimento majoritário dos Tribunais e também dos doutrinadores, é de que a anulabilidade da doação inoficiosa apenas ocorre na parte que excede o patrimônio disponível, sendo que aquela inserida na cota disponível continuaria a fazer parte do negócio jurídico.

Assim entende o Superior Tribunal de Justiça:

A nulidade de um negócio jurídico é fenômeno originário, não superveniente. A relação jurídica nasce viciada, e da existência do vício segue, concomitantemente, a sanção. Não se pode condicionar a aplicação da sanção ao acaso ou à sorte de a fortuna do doação vir a se modificar. Frise-se que a doação será nula na parte inoficiosa ("Nula é também a doação quanto à parte que exceder"), devendo ser alegada pelas pessoas que serão contempladas como herdeiros necessários por ocasião da futura abertura da sucessão, o que bem se ilustra em decisão do STJ, de cuja ementa se destaca: 'A anulação da doação no tocante à parcela do patrimônio que ultrapassa a cota disponível em testamento, a teor do art. 1.176 do Código Civil [1916], exige que o interessado prove a existência do excesso no momento da liberalidade' (STJ, 3ª T., REsp 160.969/SP, Rel. p. acórdão Min. Carlos Alberto Menezes Direito, julg. 22.09.1998, publ. DJ 23.11.98 e na RSTJ 117/373-389).

Desta feita, cabe ao herdeiro necessário prejudicado com a excessiva autonomia de vontade do doador, ajuizar ação própria para proteger seus direitos, observando o prazo prescricional legal.

Vale lembrar que em se tratando de anulabilidade, os atos podem ser ratificados pelas partes, observado o prazo para anulação, já que se convalescem pelo tempo, sendo que não cabe conhecimento de ofício pelo juiz e ainda necessária interpelação nesse sentido, devendo ser arguida pelos legítimos interessados.

Além do mais, como mencionado alhures, a anulabilidade, quando divisível o negócio jurídico, se torna inválido somente na parte que excede os ditames legais. Nesse sentido, os doutrinadores Tucci (2011) e Peluso (2012) se completam ao ensinarem:

Em todo caso, uma vez acolhida a ação anulatória, produzirá o exclusivo e específico efeito do desfazimento desse ato, a que corresponde a restituição do interessado ao statu quo ante, ou seja, à situação anterior à sua realização. (TUCCI, 2011).

A norma em questão, que também já se continha no art. 1.026 do CC/1916, contempla exceção ao princípio que, para os negócios jurídicos em geral, vem insculpido no dispositivo do art. 184, na Parte geral do Código Civil de 2002. É que, como lá se estabelece, a invalidade parcial de um negócio jurídico não o prejudicará na sua parte válida, se separável. Assim, por exemplo, num contrato, a invalidade de uma cláusula não invalida o contrato por inteiro, salvo, é evidente, se se tratar de uma cláusula que lhe seja essencial. Pense-se numa compra e venda, em que a cláusula do preço seja inválida. Decerto que, então, prejudica-se o ajuste por completo. Mas, separável a disposição inválida, persistem as demais. Não é, porém, o que sucede, portanto excepcionalmente, com a transação. (PELUSO, 2012).

Considerando esses suntuosos ensinamentos, pode-se afirmar que na hipótese do negócio jurídico compra e venda entre ascendente e descendente, a anulabilidade terá de ser arguida no prazo decadencial de dois anos, ao passo que para doação inoficiosa, o prazo é prescricional de dez anos, ambos os casos, sendo obrigatório o registro em cartório, se inicia a contagem a partir do referido registro.

  1. 4.      EFEITOS DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS ENTRE ASCENDENTE E DESCENDENTE NA SUCESSÃO

Os negócios jurídicos têm o poder de acrescer ou diminuir o patrimônio dos envolvidos, a depender do caso. Logo, o legislador ordinário foi capaz de prever situações para que as partes não se tornem insolventes, principalmente quando existem herdeiros necessários.

Contudo, deve-se observar que toda pessoa capaz tem direito a dispor livremente de cinquenta por cento de seus bens, enquanto viva, que é chamado de parte disponível, sendo o restante a legítima.

Portanto, para entender a parte disponível do patrimônio, necessário entender a parte legítima e, Carlos Roberto Gonçalves (2006) assim define a legítima:

A legítima, também denominada reserva, é a porção dos bens deixados pelo ‘de cujus’ que a lei assegura aos herdeiros necessários, que são os descendentes, ascendentes e o cônjuge. A legítima corresponde a 1/4 do patrimônio do casal, ou à metade da meação do testador. De acordo com o artigo 1.847, do Código Civil, ‘calcula-se a legítima sobre o valor dos bens existentes na abertura da sucessão, abatidas as dívidas e as despesas do funeral, adicionando-se, em seguida, o valor dos bens sujeitos a colação’. Assim, o patrimônio líquido deixado pelo ‘de cujus’ será dividido em duas metades: a legítima e a quota disponível.

Superado o entendimento sobre parte disponível e legítima, é possível afirmar que existe negócio jurídico entre ascendente e descendente sem a autorização dos demais descendentes e herdeiros legítimos, haja vista o poder de autonomia da parte disponível do patrimônio de cada pessoa capaz, analisando de forma geral a gama de negócios jurídicos vigentes.

Por outro lado, o não cumprimento das normas acerca da disponibilidade do patrimônio posto a negócios, especialmente entre ascendentes e descendentes, poderá haver consequências diversas daquelas desejadas, no caso de sucessão aberta.

A regra da doação entre ascendentes e descendentes, por exemplo, é que se configura adiantamento de herança, sendo que no caso de sucessão aberta, o donatário deverá colacionar o bem doado, conforme disposição do artigo 544 do Código Civil de 2002.

A ilustre doutrinadora Maria Helena Diniz (2006) confirma o disposto no artigo 544 do CC/02 e assevera: “O pai poderá fazer doação a seus filhos, que importará em adiantamento da legítima, devendo ser por isso conferida no inventário do doador, por meio de colação”.

Portanto, a regra geral é que se tratando de doação de pai para filho, quando aberta a sucessão, todos aqueles herdeiros necessários que receberam doações do de cujus deverão reunir ao monte da partilha os bens doados, juridicamente entendido como colação.

Todavia, a doação de um bem imóvel do pai para o filho, como exemplo, restando expressamente registrada no cartório competente que tal bem está saindo da parte disponível do patrimônio do pai, tal como dispõe o artigo 2.005 do Código Civil, o filho donatário estará dispensado de trazer o bem a colação no momento do inventário.

Assim dispõe o art. 2.005 do Código Civil de 2002: “São dispensadas da colação as doações que o doador determinar saiam da parte disponível, contanto que não a excedam, computado o seu valor ao tempo da doação”.

O mesmo serve para compra e venda de patrimônio que esteja nos limites da parte disponível do ascendente para o descendente, que poderá ser dispensado da colação de bens, caso esteja registrado na matrícula do imóvel essa disposição.

Assim, a fim de que se garanta o negócio jurídico pretendido entre ascendente e descendente, tanto na doação quanto na compra e venda, imperioso destacar no registro público que o patrimônio está saindo da parte disponível do doador ou vendedor.

Há de se destacar, porém, que não somente a doação em sua essência será objeto de colação no inventário, haja vista existir outros negócios jurídicos que se encaixam na categoria de contrato gratuito.

Desse modo, todas as liberalidades assim consideradas gratuitas, direta e indireta, incluindo as dissimuladas na forma de um negócio oneroso, deverão ser alvo da colação. Além das doações clássicas, que é a espécie mais comum de liberalidade sujeita à colação, há de se considerar também os valores viabilizados pelo de cujus ao descendente para adquirir bens móveis e imóveis em nome próprio ou própria compra do ascendente em nome do descendente, caracterizando um empréstimo jamais cobrado, bem como pagamento de dívidas do herdeiro necessário, que configura doação indireta.

Em diligência para elencar quais hipóteses de liberalidades habitualmente utilizadas, Pontes de Miranda (1983) ilustra:

Vão à colação os valôres das doações e dotes, o que o descendente adquiriu com dinheiro do ascendente [...]; os valôres dos rendimentos dos bens do pai ou da mãe de que tinha o uso (e.g., os alugueres do apartamento em que residia gratuitamente); o valor que o ascendente, à sua custa, obteve para o descendente, como emprêgo; os valôres das doações manuais, como as de jóias, salvo se simples presentes, e.g., de aniversário, de formatura ou de casamento; o que o ascendente pagou de dívidas do descendente, ou de fiança, ou de despesas e custas de ação contra o descendente. Quanto aos presentes, pode haver apreciação judicial, para saber se houve, ou não, modicidade. Se entre o ascendente e o descendente houve contrato oneroso, mas a onerosidade foi fictícia, é doação o que excedeu o valor da outra prestação.

Lado oposto, na situação fática de doação ou venda de descendente para ascendente, não há se falar em adiantamento de legítima, portanto, não faz parte da regra geral do art. 544.

O artigo 2.002 do Código Civil dispõe que: "Os descendentes que concorrerem à sucessão do ascendente comum são obrigados, para igualar as legítimas, a conferir o valor das doações que dele em vida receberam, sob pena de sonegação".

Assim, a obrigação de trazer os bens doados a colação é dos herdeiros legítimos, não sendo obrigatório para os herdeiros facultativos, testamentários ou legatários.

Compreende o doutrinador Zeno Veloso (2003) que o cerne da colação é auferir as doações como adiantamento de herança ao herdeiro e, não colocá-lo em posição mais favorável do que a dos outros, assim, não é coerente dizer que o descendente que doa um bem ao ascendente queira adiantar-lhe a herança, pois a lógica é que os pais morram primeiro do que os filhos.

Embora os ascendentes sejam herdeiros necessários, estes não foram citados como obrigados a fazer a colação, tendo em vista que não há se falar em analogia para restringir direitos.

Porém, caso o herdeiro necessário donatário, morrer antes do doador – quando aberta a sucessão do doador – ter-se-á o direito de representação, no qual os herdeiros do donatário terão a obrigação de trazer à colação, comparecendo em substituição ao pré-morto, na sucessão do doador.

Vale citar, para melhor compreensão, o ensinamento da doutrinadora Maria Berenice Dias (2011):

Os netos precisam trazer à colação os bens recebidos pelo seu genitor, quando comparecem à sucessão do avô por direito de representação. Quando a doação é feita pelo avô ao neto, não há dever de colação, ainda que por ocasião de abertura da sucessão forem os netos os únicos herdeiros. Do mesmo modo, o pai não tem que colacionar o bem doado pelo seu pai ao seu filho.

Outra situação que merece destaque é no caso de dívidas entre ascendente e descendente. Caso um filho tenha uma dívida com o pai, seja por qualquer negócio jurídico realizado entre eles, ocorrendo a sucessão do pai, o artigo 2.001 do Código Civil vigente determina o seguinte: “Se o herdeiro for devedor ao espólio, sua dívida será partilhada igualmente entre todos, salvo se a maioria consentir que o débito seja imputado inteiramente no quinhão do devedor”.

Assim, sendo o herdeiro devedor do falecido haverá duas possibilidades para saldar a dívida, sendo a regra que tal dívida seja partilhada entre os demais herdeiros na proporção de seus quinhões, considerando exceção o consenso da majoritário dos demais herdeiros, que resolva-se pela imputação da dívida no próprio quinhão do devedor.

O doutrinador Dimas Messias de Carvalho (2007) faz as seguintes observações sobre o tema:

Veja-se que o caso não é de dívida do espólio, mas sim de crédito em relação ao herdeiro devedor. Se o devedor é abonado e solvente, resolve-se satisfatoriamente a dívida pela sua atribuição aos demais herdeiros, uma vez que terão meios de receber, sem que necessária a imputação da dívida no quinhão do devedor, medida esta nem sempre interessante, em especial quando os bens do espólio forem de pequeno valor. Essa é a regra geral, que tem aplicação ao devedor herdeiro como se fosse estranho, incluindo-se no ativo do espólio, no momento da declaração de bens, os créditos deixados pelo autor da herança, que se sujeitam à partilha regular entre os herdeiros. Apenas se ressalva, naturalmente, para o caso de herdeiro devedor, a sua exclusão em face dos direitos que se reservam aos demais herdeiros no recebimento daquele crédito.

Com isso, a argumentação expendida vai de acordo com o disposto no artigo 2.001 do Código Civil de 2002, que objetiva a melhor forma para quitar dívida entre herdeiro e de cujus, já que o espólio tem direito ao crédito e o herdeiro a obrigação de quitá-lo.

Ademais, repise-se que há presunção de igualdade da legítima entre os herdeiros, pois quando um ascendente tem por bem doar, emprestar ou ainda simulação de compra e venda para com um descendente, presume-se que não há a intenção de favorecimento material com os demais descendentes.

Dessa forma, o legislador ordinário optou por proteger a legítima, garantindo que todos os descendentes em pé de igualdade sejam beneficiados como tal, assim sendo, percebe-se que o Poder Judiciário buscando cumprir a norma, opta por melhor adequá-la aos casos concretos que lhes são apresentados.

CONCLUSÃO

Na atual sistemática do Direito Civil Brasileiro, pode-se afirmar que apesar dos requisitos de validade e existência regulamentados pelo Código Civil de 2002, são prescindíveis para que o contrato do negócio jurídico produza efeitos.

Isso porque o conteúdo contratual pode sofrer mutações no campo da eficácia, já que a realidade fática que as partes almejam deve haver simetria com a realidade jurídica do negócio celebrado.

Desta feita, apesar dos esforços despendidos pelos doutrinadores para concluir a assuada temática, as práticas da sociedade põem a cabo as ideias consolidadas, e acabam por exigir novos regulamentos, o que justifica a dissociação dos planos de validade e eficácia dos contratos.

Pensando nisso, o legislador buscou assegurar a segurança jurídica dos negócios jurídicos realizados entre ascendentes e descendentes, para que esses negócios não maculem a ordem jurídica, bem como estejam em harmonia com o real desejo entre as partes, cumprindo os requisitos impostos legalmente e ainda capaz de produzir os efeitos pretendidos.

Especificamente se tratando da compra e venda entre ascendente e descendente disposto no artigo 496 do Código Civil de 2002, tem-se que para ser considerado válido o negócio é necessário a anuência dos demais herdeiros necessários e o cônjuge, sendo desnecessária a autorização daquele que estiver sobre o regime da separação obrigatória de bens.

Inclusive, sobre o regime de bens elencado no referido artigo é onde recai a discussão doutrinária e de alguns operadores do Direito, que argumentam haver erro técnico, devendo constar na redação a dispensa da autorização daqueles que estão sob o regime de separação convencional de bens, pois apenas nesse regime é possível os bens não se comunicarem no caso de divórcio ou de sucessão, por decorrer de pacto antenupcial.

Apesar da controvérsia no artigo 496 do Código Civil, tem-se que considerar a importância de sua vigência, pois antes do Código Civil de 2002, a polêmica estava em se tratar de negócio nulo ou anulável, que se comparando com a atual, era bem mais relevante.

Assim, indubitavelmente o referido artigo aprimorou o instituto, já que claramente dispôs se tratar de um negócio jurídico anulável, sendo que o principal objetivo da norma em comento é o de proteger a parte legítima dos demais descendentes e herdeiros necessários, ao vincular a validade da compra e venda entre ascendente e descendente com a autorização dos herdeiros legais.

Desta feita, embora a determinação do artigo declarar a compra e venda entre pais e filhos anulável, não mencionou o prazo para anulação do negócio e, portanto, deve-se observar a regra geral disposta no artigo 179 do Código Civil, que menciona o prazo de dois anos após a consumação do ato.

Entende-se, porém, que a consumação do ato de compra e venda se dá quando do registro público no cartório competente, então, será a partir daí que se inicia a contagem do prazo de dois anos para pleitear a anulação da compra e venda, devendo essa ação ser proposta pelos legítimos interessados.

Lado outro, o negócio jurídico doação entre pais e filhos, caso seja fora dos limites legais, a jurisprudência sufragada no entendimento do artigo 205 do Código Civil, determina dez anos de prazo para anulação.

Todavia, há de se ponderar os institutos da doação em duas espécies, pois haverá a doação de parte disponível, sendo esta passível de anulação pelo prazo de dez anos e, ainda, doação inoficiosa, que se trata de doação que excede a liberalidade de disposição dos bens.

Nesse caso, a doação será nula de pleno direito, conforme dispõe o artigo 549, todavia a nulidade alcançará apenas a parte que exceder os limites da liberalidade do patrimônio do doador, assim, não será nula a doação que estiver nos limites da parte disponível.

Ademais, importante ressaltar a necessidade de compreender a diferença entre parte legítima e parte disponível do patrimônio, vez que aquele se trata de reserva de bens do falecido aos herdeiros necessários, já a parte disponível é o que corresponde àqueles bens que podem ser dispostos livremente.

Entretanto, reitera-se que na doação entre ascendente e descendente, há presunção de adiantamento de legítima que reflete diretamente na sucessão, pois havendo a doação, obrigatoriamente o donatário deverá colacionar o bem doado no inventário do doador, salvo se tiver expressamente disposto que tal bem doado saiu da parte disponível do patrimônio.

Isso ocorre, pois, o artigo 544 do Código Civil determina que as doações feitas de pais para filho configuram adiantamento de legítima, pois presume-se que o ascendente não tem a intenção de beneficiar um descendente em detrimento de outro, pois caso assim queira, deve ser expressamente mencionado como bem doado da parte disponível.

Portanto, os negócios jurídicos entre ascendentes e descendentes deveras são regulamentados pela lei, bem como o Poder Judiciário corrobora a intenção do legislador em proteger o patrimônio dos herdeiros legais, rechaçando a fraude e simulação entre pais e filhos, contudo considerando as vontades destes nos negócios jurídicos celebrados, quando de acordo com a legislação. 

BIBLIOGRAFIA

AZEVEDO Jr. José Osório de. Justificativa para III Jornada de Direito Civil. Citado por Flávio Tartuce. A venda de ascendente para descendente e a necessidade de correção do art. 496 do Código Civil. IBDFM: São Paulo, 2019.

AZEVEDO, Antônio Junqueira. Negócio Jurídico: existência, validade e eficácia. 4ª ed. Atual com o novo código civil. São Paulo: 2002.

CARVALHO, Dimas Messias de e outro. Direito das sucessões inventário e partilha. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 421.

COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Civil. Parte Geral. Vol. 1. 5ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2012.

DIAS, Maria Berenice. Manual das Sucessões. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das sucessões. São Paulo: Saraiva 2006.

FIGUEIRÊDO, Jones e outro. Código Civil Anotado. São Paulo: Método, 2005. p. 255.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Sinopses Jurídicas - Direito das Sucessões. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006.

KADOMOTO, Cibele Aguiar. A compra e venda entre ascendente e descendente e seu reflexo no Direito das Sucessões. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3270, 14 jun. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22000. Acesso em: 7 jan. 2020.

LOTUFO, Renan. Código Civil Comentado. Vol. 1. 2ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2004.

MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 295.

PELUSO, Cezar. Código civil comentado. 6 ed. Barueri: Manole, 2012, p. 867.

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Tratado de Direito Privado. Tomo III. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1983. p.5.

_________. Tratado de Direito Privado. Parte Especial, Tomo LV. 3ª ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972.

ROSENVALD, Nelson. Código Civil Comentado, Coordenador Ministro Cezar Peluso, 9ª ed. rev. e atual. Barueri - SP: Manole, 2015, p. 568.

STJ. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.755.379-RJ. Ministro Relator Moura Ribeiro. Acórdão, 10 de outubro de 2019. Voto Vencido.

TARTUCE, Flávio. A venda de ascendente para descendente e a necessidade de correção do art. 496 do Código Civil. IBDFM: São Paulo, 2019.

_________. Direito Civil. Vol. 3. Teoria Geral dos contratos e contratos em espécie. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 317.

TUCCI, Rogério Lauria. Doutrinas essenciais de direito processual civil. v. 5. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 635.

VELOSO, Zeno. Comentários ao Código Civil. Volume 21. 1ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

 


Heloanny de Freitas Brandão

Heloanny de Freitas Brandão

Heloanny de Freitas Brandão: Mestre em estudos linguísticos pela Universidade Federal de Goiás. Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Goiás. Especialista em Direito do Trabalho e processual do Trabalho. Coordenadora do curso de gestão pública da Faculdade Realiza. Professora da faculdade Esup – certificada FGV. Advogada.

Ver todos os artigos do Autor



Jéssica Lorrane da Silva

Jéssica Lorrane da Silva

Jéssica Lorrane da Silva: Especialista em Direito Público. Professora de Direito Administrativo e Direito Constitucional. Advogada.

Ver todos os artigos do Autor



Yasmine Alves Batista

Yasmine Alves Batista

Yasmine Alves Batista: Advogada especialista em Direito Civil e Processo Civil. Professora de Direito Administrativo. Membro da Comissão de Advocacia Jovem Seção Goiás, triênio 2019/2021.

Ver todos os artigos do Autor





Baixar o Artigo