COVID-19: O impacto da imprevisibilidade sobre as obrigações decorrentes de contratos comutativos e de execução continuada à luz do Código Civil brasileiro
Júlio César Oliveira de Souza
Resumo
O presente artigo pretende analisar a possibilidade de aplicação da Teoria da Imprevisão como ferramenta jurídica destinada à relativização das obrigações decorrentes de relações contratuais diante do desequilíbrio econômico e financeiro causado pelo isolamento social determinado pelo poder público como medida preventiva frente ao atual cenário de pandemia mundial decorrente da contaminação pelo COVID-19 (coronavírus). Questiona-se quais situações podem ser consideradas imprevisíveis e como essa imprevisibilidade deve atuar para que a parte impactada economicamente possa dirimir o desequilíbrio implantado na relação contratual buscando a relativização da força vinculativa do contrato e da forma de cumprimento das obrigações por ele impostas. Trata-se de pesquisa exploratória, com abordagem qualitativa e baseada em levantamento bibliográfico, abordando a evolução da interpretação jurídica acerca do Direito Contratual e os princípios que regem o negócio jurídico e concluindo pela possível aplicação da Teoria da Imprevisão aos contratos impactados pela atual conjuntura social e econômica que impulsiona o estado brasileiro a uma nova e urgente concepção jurídica fundada na bivalência vida humana/estabilidade econômica.
Palavras-chaves: COVID-19. Contratos. Obrigatoriedade. Princípios do negócio jurídico. Teoria da Imprevisão.
1) Introdução
Não obstante reconhecida a força vinculante dos contratos pelo princípio pacta sunt servanda, a relativização dos efeitos contratuais diante de determinada circunstâncias que impedem ou dificultam o cumprimento da obrigação avençada tem predominância no entendimento moderno acerca da relação contratual.
O contrato como instrumento de fixação de uma relação jurídica deve se revestir de elementos que permitam a aferição da validade do negócio jurídico, bem como urge que sua interpretação esteja em pleno acordo com os princípios que norteiam sua constituição e que sua composição seja regida pela autonomia da vontade, boa-fé objetiva e função social.
Nesse contexto, o sistema jurídico contemporâneo observa que o contrato deve transcender a mera esfera obrigacional que circunda os contratantes e alcançar também um equilíbrio finalístico entre as obrigações decorrentes do negócio jurídico, de forma que nenhuma das partes seja beneficiada ou prejudicada demasiadamente em relação a outra.
Para a compreensão da Teoria da Imprevisão como instituto jurídico de reestabelecimento do equilíbrio contratual diante de fatos supervenientes, faz-se necessário um esboço da evolução interpretativa do Direito Contratual para que possamos compreender os motivos e fundamentos que figuram como requisitos legais e jurídicos para a estabilidade da relação negocial através da relativização das obrigações impostas no contrato. Bem como, uma análise sobre a livre manifestação de vontade e a liberdade contratual como elementos subjetivos e objetivos na formação do negócio jurídico.
Pondera-se sobre as alternativas que podem ser aplicadas ao problema da onerosidade excessiva como forma de dirimir o impacto econômico e social negativo sobre a parte que, por motivos imprevisíveis e alheios a sua vontade, se vê impedido de cumprir a obrigação imposta pelo contrato.
Busca-se, por fim, alcançar uma conclusão que permita-nos vislumbrar a possível aplicação dos efeitos mitigadores da imprevisibilidade sobre a força vinculativa dos contratos cuja execução se prolatam no tempo, produzindo resultados futuros, sobretudo no atual cenário de desestabilidade econômica e política em que se encontra o estado brasileiro.
2) Interpretação dos Princípios Contratuais
A liberdade de contratar sofreu influência do princípio da igualdade de todos perante a lei de, forma que as partes envolvidas em um negócio jurídico eram considerados livres para a manifestação de suas vontades e para a ponderação dos termos contratuais, havendo uma “indiferença da ordem jurídica pela situação das partes de qualquer contrato”. (GOMES, 2019, p.23)
Vale dizer, o Direito Contratual, em um primeiro momento, não se influenciava pela isonomia. Reunido os requisitos necessários para a realização de negócios jurídicos, qualquer pessoa era considerada capaz e em par de igualdade absoluta com quem contratava, justificando a ausência de matéria legislativa que regulasse ou impedisse que o negócio jurídico fosse formado com base em obrigações abusivas, desproporcionais ou desarrazoáveis.
Com a evolução do pensamento jurídico voltado para a isonomia, não somente sobre a manifestação da vontade de contratar, mas também para que os efeitos decorrentes do negócio jurídico se efetivassem de forma que as diferenças econômicas e sociais existentes entre as partes não se tornassem ainda maiores, distanciando cada vez mais os sujeitos da relação jurídica de uma condição de paridade, o negócio jurídico passa a ser instrumentalizado também pelo equilíbrio contratual, não se admitindo que a liberdade de disposição de interesses das partes sejam afetadas de forma desproporcional pela força econômica atribuída a cada um dos sujeitos na relação jurídica.
Por esse motivo, uma intervenção estatal se fez necessária através de um exercício legislativo e jurídico que visava impor ao contrato um maior equilíbrio obrigacional, afastando-se da “suposição de que a igualdade formal dos indivíduos asseguraria o equilíbrio entre os contratantes, fosse qual fosse a sua condição social” (GOMES, 2019, p. 5), observando não só a legalidade, mas também a condição isonômica dos contratantes.
Há, portanto, uma nova concepção que se lança sobre a relação jurídica contratual que absorve elementos principiológicos de isonomia, dignidade humana, boa-fé e função social do contrato, incorrendo em uma constitucionalização que afeta diretamente as relações fundadas sob a égide do direito privado.
Nesse sentido, Orlando Gomes afirma que “O pensamento jurídico modificou-se radicalmente, convencendo-se os juristas, como se disse lapidarmente, que entre o forte e o fraco é a liberdade que escraviza e a lei que liberta”. (2019, p.23)
O contrato, enquanto instrumento de fixação de obrigações e direitos, encontra-se em uma relação de interdependência com os negócios jurídicos, havendo na definição do primeiro elementos derivados do conceito do segundo.
À parte o problema de sua conceituação, resta salientar que o negócio jurídico existe no mundo fático a partir da exteriorização de vontades de sujeitos envolvidos em uma relação jurídica.
Nesse sentido, negócio jurídico “é o tipo de fato jurídico que o princípio da autonomia da vontade deixou à escolha das pessoas”. (MIRANDA, 2.000, p.141).
Para Venosa, “Quando o ser humano usa de sua manifestação de vontade com a intenção precípua de gerar efeitos jurídicos, a expressão dessa vontade constitui-se num negócio jurídico”. (VENOSA, 2019, p.1)
O art. 104 do Código Civil prescreve que a validade do negócio jurídico requer a comunhão de elementos objetivos necessários para a formação da relação contratual: agente capaz; objeto lícito, possível, determinado ou determinável; forma prescrita ou não defesa em lei.
A princípio, ausente qualquer desses requisitos o negócio jurídico torna-se carente de validade.
O contrato pode ser vislumbrado, então, como elemento instrumentalizador da vontade dos agentes que através de sua força vinculativa realizam um negócio jurídico com finalidade de imposição de determinadas obrigações a serem cumpridas pelas partes, levando em consideração requisitos legais impostos para sua formação.
A manifestação de vontade, por sua vez, exterioriza-se, de forma autônoma, como objeto da liberdade de contratar que se estende a todos de forma indistinta, desde que observados os limites e requisitos impostos pela lei como elementos de validade dos atos jurídicos.
“A vontade, assim, é autônoma ao exteriorizar-se, reafirmando a liberdade do homem na programação de seus interesses”. (AZEVEDO, 2009, p.12)
Doutra forma, a liberdade contratual, através da qual é dada ao sujeito a possibilidade de dispor livremente de seus interesses, diante da realidade fática que se depreende da relação contratual, onde o poder econômico prevalece em todas as fases contratuais, deve ser constrangida a observar princípios jurídicos que impõem aos contratantes a manutenção do equilíbrio contratual, de forma que direitos e deveres sejam dispostos de maneira tal que as partes obtenham do negócio jurídico o resultado mais horizontal possível. A prestação deve ser equivalente ao benefício que dela decorra, de modo que dar, pagar, fazer ou não fazer produza um resultado de valor correspondentemente proporcional àquilo que da obrigação resulte.
Álvaro Villaça Azevedo diz que:
Na liberdade contratual, os interesses humanos existem, teoricamente, em pé́ de igualdade, pois o mais forte, economicamente, no mais das vezes, reduz, na avença, a área de atuação do direito do mais fraco, que fica desprotegido, juridicamente, no momento em que o contrato surge, bem como nas revisões dessa contratação [...] No mundo atual, sentimos a imperante precisão de que o Estado intervenha na ordem contratual, para
que a mesma não seja instrumento de escravização. Essa intervenção, por normas de ordem pública, evita o desequilíbrio. (2009, p.12)
Há de se considerar, no entanto, que tanto a liberdade de contratar como a liberdade contratual estão adstritas ao princípio da boa-fé.
No sentido atribuído pelo Código Civil como comportamento geral a ser observado nas relações obrigacionais, a boa-fé adquire conotações jurídicas de aplicação direta e delimitada.
Como ensina Judith Martins-Costa:
Em vista das normas do Código Civil de 2002, a boa-fé objetiva se põe, expressamente, como metro para a aferição da licitude no exercício de direitos derivados de negócios jurídicos (art. 187); como cânone de interpretação dos negócios (art. 113); e como cláusula geral dos contratos, servindo à sua integração (art. 422). (2018, p.45)
Como se trata de uma situação decorrente do comportamento humano, há sempre a expectativa entre os sujeitos da relação contratual de que o outro esteja agindo de boa-fé, ou seja, que no mínimo não esteja cooperando para o surgimento ou concretização de situações que sabem ser desleais e que traria prejuízo manifesto ao negócio.
Trata-se, portanto, de um princípio jurídico que deve ser observado em todas as fases da relação contratual, de sua formação até sua extinção, independentemente do modo que o termo final se concretize.
Modo geral, afirma-se que os deveres pré-contratuais decorrem da boa-fé objetiva como regra de lealdade e atenção às legítimas expectativas (boa-fé/confiança). Sua especialidade está não apenas na circunstância de incidir na fase pré-contratual. Conforme o iter desenvolvido, aproximando-se do momento da conclusão contratual, haverá maior intensidade na incidência do princípio, de modo a levar, conforme o caso, à configuração da culpa in contrahendo, se violada a boa-fé na fase antecedente à conclusão contratual; ou se já finda a relação contratual, se verificar culpa post pactum finitum. (MARTINS-COSTA, 2018, p.422)
Nesse contexto, o Código Civil prescreve que a interpretação dos negócios jurídicos deve ser sempre aquele que corresponda à boa-fé, conforme art. 113 do referido diploma.
Outra norma principiológica a ser observada trata dos efeitos externos do contrato. O art.421 do Código Civil dispõe que “A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato”.
A liberdade contratual, já mencionada acima, encontra então um limite legalmente imposto a ser observado pelos contratantes no momento da disposição de seus interesses e sobretudo na execução do contrato. Esse limite está diretamente ligado a ideia de proporcionalidade e razoabilidade voltada para o justo e equilibrado campo obrigacional decorrente do negócio jurídico.
Além da influência limitadora à liberdade contratual, a função social destina-se também a direcionar o negócio jurídico a atender a prevalência do interesse público sobre o interesse privado, como forma de estabelecimento da solidariedade social constituída como princípio/objetivo fundamental no ordenamento jurídico brasileiro pelo art.3º, I da Constituição Federal de 1988. Juntamente com os demais objetivos constitucionais e o princípio da dignidade humana, o preceito jurídico fundado na solidariedade social visa alcançar o bem estar coletivo voltado para a capacidade do Estado em proporcionar o mínimo de estabilidade econômica e bem estar social aos seus cidadãos.
Nesse contexto, Judith Martins-Costa afirma que:
O princípio da função social, ora acolhido expressamente no Código Civil (arts. 421 e 1.228, § 1.º) constitui, em termos gerais, a expressão da socialidade no Direito Privado, projetando em seus corpora normativos e nas distintas disciplinas jurídicas a diretriz constitucional da solidariedade social (CF, art. 3.º, III, in fine). (MARTINS-COSTA, 2005, p.41)
Arnaldo Rizzardo considera que há a necessidade de se evitar, além do desequilíbrio contratual entre as partes, também o impacto social que as obrigações podem causar quando se vincula o contratante a cláusulas abusivas que imponham comportamento lesivos a “valores superiores, como o da habitação ou moradia, o que trata da vida, da saúde, da formação, do respeito, da dignidade”. (RIZZARDO, 2018, p.19)
Rizzardo considera ainda que:
Veio introduzida a função social do contrato, que leva a prevalecer o interesse público sobre o privado, a impor o proveito coletivo em detrimento do meramente individual, e a ter em conta mais uma justiça distributiva que meramente retributiva. Rompe-se com o princípio arrimado no velho brocardo latino suum cuique tribuere – dar a cada um o seu. Rompe-se, ainda, o individualismo que estava muito em voga nos Século XIX e até metade do Século XX, enfatizado por Anatole France, cuja síntese do pensamento definia o justo: “O dever do justo é garantir a cada um o que lhe cabe, ao rico a sua riqueza e ao pobre a sua pobreza”. (2018, p.19)
Dessa forma, enquanto a boa-fé é diretriz do comportamento das partes na relação jurídica, “A função social do contrato consiste em abordar a liberdade contratual em seus reflexos sobre a sociedade (terceiros) e não apenas no campo das relações entre as partes que o estipulam (contratantes)”. (THEODORO JÚNIOR, 2014, p.37)
Pode-se concluir então que o contrato é instrumento de realização de negócio jurídico cujo conteúdo e efeitos são limitados aos preceitos da boa-fé e da função social, de forma que, mesmo que os interesses particulares sejam o núcleo da relação jurídica, as consequências das obrigações dele decorrentes não podem extrapolar os limites do interesse coletivo, da dignidade humana e da solidariedade social fincadas como alicerces do ordenamento jurídico pátrio.
A função social do contrato acaba por produzir um impacto na relação contratual quando situações exógenas precisam ser observadas no sentido de tornar o vínculo obrigacional menos oneroso às partes, induzindo uma necessária relativização da força vinculativa do contrato como forma de se alcançar o justo e necessário equilíbrio contratual.
3) A imprevisibilidade como fonte modificadora das condições contratuais
A máxima jurídica pacta sunt servanda expressa um princípio geral decorrente do direito canônico que impõe regra de cumprimento e vinculação absoluta aos termos do contrato. Pela interpretação do brocardo, as vontades manifestadas quando transformadas em termos constituintes do instrumento contratual vinculam as partes às obrigações decorrentes do negócio jurídico, fazendo lei entre os contratantes.
A força obrigatória do contrato leva em consideração que no momento de sua formação as disposições de vontade se deram de forma livre, motivo pelo qual todos os fatos que se encontravam ao alcance da interpretação do negócio jurídico e que poderiam ser vislumbrados pelas partes como decorrências da execução contratual devem ser cumpridas como finalidade do negócio jurídico livremente pactuado.
Certo é que o contrato se torna um instrumento formal de produção de direitos, servindo como demonstração bastante da fixação da obrigação, da aceitação dos termos pelas partes e do vínculo decorrente do negócio jurídico.
Havendo, todavia, inadimplemento das obrigações, deve se analisar se o cumprimento não se deu por voluntariedade do devedor ou porque acontecimentos supervenientes e imprevisíveis afetaram as condições de normalidade presentes no momento da formação do contrato de tal forma que sua execução se tornou impossível.
Esses acontecimentos, tidos como causas fortuitas, possuem idoneidade jurídica para mitigar a força obrigatória do contrato e não se confundem com situações decorrentes do próprio negócio jurídico e que ensejam em nulidades contratuais, como, por exemplo, aquelas que no contrato de adesão estipulem renúncia antecipada de direito decorrente do negócio jurídico, pelo aderente.
O adimplemento da obrigação pode ser obstado por fato não imputável ao devedor. A inexecução decorrente do acaso caracteriza-se pela impossibilidade da prestação, determinada por evento estranho e superior à vontade do devedor. Deve tratar-se, obviamente, de impossibilidade superveniente, visto como, se for originária, a relação obrigacional será nula. Se a prestação se torna impossível sem culpa do devedor, o inadimplemento é a consequência natural. (GOMES, 2019, p.137)
A involuntariedade atribuída a inexecução, como bem ensina Orlando Gomes, retira do devedor a culpa, pois os fatos supervenientes e imprevisíveis que alteram as condições de normalidade da execução contratual gravam o negócio jurídico de tal forma que, considerados fortuitos, transcendem a vontade do contratante e impossibilitam o cumprimento da obrigação.
A noção de que fatos imprevisíveis maculam a força obrigatória dos contratos a partir do momento em que a disposição de vontade das partes não poderia admitir ou prever determinadas situações encontra arrimo nos princípios da boa-fé e função social acima mencionados. Também sofre influência do impedimento legal de enriquecimento sem causa positivado no art. 884 do Código Civil. Por esse motivo, a imprevisibilidade por si não é suficiente para que se considere a possibilidade de relativização da força obrigatória dos contratos, devendo também ser identificado um desequilíbrio contratual manifesto, onerosidade excessiva a uma das partes e vantagem extrema a outra. Ou seja, não basta que o fato seja inesperado, é preciso a demonstração de que as condições para o cumprimento das obrigações se modificaram de tal forma que o adimplemento se tornou juridicamente impossível, motivo pelo qual o contrato deve ser revisto, ou ainda, extinto.
A intenção do legislador parece ser direcionada ao equilíbrio contratual, pois tempera a intangibilidade do conteúdo contratual diante da necessidade de se conter “desproporções excessivas e injustificadas”. (KONDER, 2020, p.127)
Considera-se, então, que pesa sobre o contrato cláusula geral de flexibilização da obrigação. Em situação de alteridade ao princípio pacta sunt servanda, a cláusula rebus sic standibus se mostra implícita no contrato comutativo de trato sucessivo se fazendo conjurar sempre que as condições de normalidade existentes no momento da composição do negócio jurídico sofram alterações decorrentes de acontecimentos imprevisíveis e supervenientes que dificultem ou impossibilitem a execução do contrato. Enquanto o princípio pacta sunt servanda opera de imediato à estipulação das obrigações, regendo a execução do contrato sob o fundamento da autonomia da vontade das partes, a cláusula rebus sic standibus é um remédio a ser aplicado caso o contrato sofra alterações não previstas e não decorrentes do próprio negócio jurídico como forma de se reestabelecer o equilíbrio contratual e evitar um prejuízo ou vantagem excessiva a qualquer das partes.
O Código Civil brasileiro, com recente redação dada pela Lei 13.874/2019, dispõem no parágrafo único do art.421 que nos contratos de natureza privada prevalecerá a intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual. O preceito normativo do dispositivo supra, embora limite a ingerência estatal sobre os efeitos do negócio jurídico firmado entre particulares, não exime o poder público da necessária imposição legal e jurídica da observância dos princípios constitucionais da solidariedade, dignidade humana e função social, de forma que há uma disponibilidade maior em se conjurar a liberdade contratual, porém ainda adstrito aos efeitos equilibrados da obrigação.
A segunda parte do dispositivo mencionado, por sua vez, trata da excepcionalidade da revisão contratual, ou seja, somente em casos específicos, diante de situações imprevisíveis e havendo uma manifesta desproporção entre o momento da execução e o valor da prestação devida, poderá o contrato sofrer intervenção jurisdicional com a finalidade de se reestabelecer o equilíbrio contratual e assegurar o real valor da prestação.
Na valiosa lição de Venosa:
Um contrato válido e eficaz deve ser cumprido pelas partes: pacta sunt servanda. O acordo de vontades faz lei entre as partes, dicção que não pode ser tomada de forma peremptória, aliás, como tudo em Direito. Sempre haverá temperamentos que por vezes conflitam, ainda que aparentemente, com a segurança jurídica. (VENOSA, 2014, p.18)
Dessa forma, a força obrigatória dos contratos, ainda que o legislador tenha se posicionado pela mínima intervenção e pela revisão de termos pautada pela excepcionalidade, encontra óbice legal ao absolutismo do vínculo contratual que permite uma inevitável relativização de seus efeitos evitando que haja um desequilíbrio causado por fatos supervenientes e imprevisíveis.
Além da revisão contratual prescrita pelo art. 317 do Código Civil, há ainda a situação de onerosidade excessiva que nos contratos de prestação continuada podem ensejar na extinção da avença, a teor do art. 478 do referido diploma.
Note-se que aqui também se exige que as condições originárias no momento da formação do contrato sofram uma alteração decorrente de acontecimentos extraordinários e inesperados que causem onerosidade excessiva a uma parte e extrema vantagem a outra.
Mais uma vez, é possível identificar a intenção do legislador voltada para a manutenção do equilíbrio contratual. Tanto assim, que tratou de possibilitar ao réu na ação resolutiva a possibilidade de, por inciativa própria, modificar equitativamente as condições do contrato como forma de se evitar a medida jurídica mais drástica de extinção do contrato, conforme art. 479 do Código Civil.
A força obrigatória dos contratos se mantém, então, enquanto as condições para sua formação não sofram impactos de situações externas imprevisíveis, supervenientes, que ensejem em uma manifesta desproporção em sua execução, causando uma onerosidade excessiva em face de uma vantagem extrema aos integrantes da relação contratual.
4) A COVID-19 como evento imprevisível
Devemos observar que no entendimento jurídico fatos imprevisíveis são aqueles que não estão intrinsicamente presentes como elementos decorrentes da execução do contrato ou que se demonstram como risco inerente ao negócio jurídico. Exemplo é o contrato agrícola que possui efeitos obrigacionais futuros. Nesses casos, o Superior Tribunal de Justiça tem como entendimento pacificado o não cabimento da aplicação da Teoria da Imprevisão quando a execução do contrato é impactada por elementos naturais como estiagem ou chuva em excesso, pragas que atinjam a plantação, queda do preço do produto por influência de mercado externo, aumento de preços de insumo, etc. Todos esses acontecimentos são considerados pelo STJ como de risco inerente ao negócio jurídico, motivo pelo qual não se torna cabível a resolução ou revisão contratual com fundamento na imprevisibilidade dos eventos, ainda que sejam futuros.
Por outro lado, os contratos de locação de execução diferida, que se estendem pelo tempo, podem ser revistos quando fatos inesperados e supervenientes afetam a condição econômica do locatário, acarretando em um declínio de sua capacidade econômica de forma que o pagamento das parcelas do aluguel se torne um sacrifício para o devedor que, inadvertidamente, se encontrará em uma situação que lhe impõe escolher entre sua sobrevivência digna ou o cumprimento da obrigação locatícia.
Destaca-se, todavia, que não se considera como fato imprevisível os efeitos inflacionários sobre a economia, conforme Informativo de Jurisprudência nº0352 do STJ que afasta, nesses casos, a teoria da imprevisão, pois “não se mostra razoável o entendimento de que a inflação possa ser tomada, no Brasil, como álea extraordinária, de modo a possibilitar algum desequilíbrio na equação econômica do contrato[...]”.
No entanto, a pandemia mundial causada pela circulação de um novo agente do coronavírus, causa da doença chamada COVID-19, provocou uma reação de prevenção em massa, não somente no Brasil, mas na grande maioria dos países espalhados pelos cinco continentes. A propagação do vírus se deu de forma tão rápida e seus efeitos se demonstraram tão graves, com o número de mortes aumentando exponencialmente por todo o mundo, que algumas medidas drásticas se tornaram necessárias como forma de prevenir ao máximo os efeitos da pandemia.
No Brasil, decretos de calamidade pública foram expedidos pelos governos federais, estaduais e municipais, determinando o fechamento do comércio, a restrição de circulação pelas ruas das cidades, fechamento de fronteiras e outras medidas consideradas necessárias para evitar a propagação do vírus e o contágio pelas população.
O impacto na vida social e econômica das pessoas foi inevitável, pois a vida cotidiana de trabalho, reuniões públicas, frequência de estudantes nas escolas se tornou, sem nenhum aviso prévio, impossibilitada pelo isolamento social implementado pelo poder público como medida preventiva, com exceção apenas para aqueles serviços considerados essenciais como serviços de saúde e segurança pública.
Fatalmente a economia pública e individual passa a sofrer impactos negativos com essas medidas. O trabalho ficou prejudicado com o fechamento de empresas e indústrias, o que reflete diretamente na produção de renda e enseja no aumento de desempregos involuntários causando um desequilíbrio econômico e financeiro na vida dos cidadãos.
A imprevisibilidade desses acontecimentos é fato indiscutível, pois a propagação da doença se deu de forma súbita e inesperada ao redor do mundo.
Portanto, não se trata de risco inerente à álea intrínseca a qualquer negócio jurídico.
Tanto assim, que o poder público tratou de emitir em situação emergencial normas que regulamentam o trabalho e outras relações jurídicas durante o período em que durar a pandemia.
A MP nº936 de 1 de abril de 2020 instituiu o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego dispondo sobre medidas de relativização do contrato de trabalho com a possibilidade de redução proporcional de jornada de trabalho e salário dos empregados, suspensão temporária do trabalho e a instituição do Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda como medida a garantir o mínimo existencial do trabalhador prejudicado e ao mesmo tempo garantindo a manutenção de seu emprego enquanto durar os efeitos da COVID-19.
Ao mesmo tempo, foi sancionada a Lei 13.982/2020 que, alterando a lei 8.742/1993, adicionou medidas excepcionais para fins de elegibilidade ao benefício de prestação continuada durante a situação emergencial de saúde pública que afeta o estado brasileiro, instituindo o pagamento de auxílio pelo poder público a pessoas em situação de necessidade econômica, inclusive aos trabalhadores autônomos que sofrem com a ausência de renda provocada pelos acontecimentos imprevisíveis decorrentes da propagação do novo coronavírus.
Esses e outros fatores tornam fácil a percepção que as condições de normalidade vislumbradas anteriormente ao surgimento do novo vírus foram alteradas de forma súbita e totalmente imprevisível, afetando diretamente as relações sociais e econômicas, causando um impacto na sobrevivência dos brasileiros que se veem diante de um dilema fundado na bivalência vida/economia que pode ser considerado como um problema de valores indissociáveis.
Acerca do impacto desses eventos nos contratos de prestação continuada e de efeitos futuros, como o de locação por exemplo, vimos que a superveniência e a imprevisibilidade, juntamente com a desproporcionalidade, onerosidade excessiva e extrema vantagem a uma das partes são causas suficientes para a revisão ou resolução contratual. Se se instala um desequilíbrio nos efeitos decorrentes da execução da obrigação contratual por conta dos acontecimentos atribuídos à influência da pandemia mundial causada pela COVID-19, parece-nos plenamente aplicável a Teoria da Imprevisão como forma de temperar os efeitos da força obrigatória dos contratos, possibilitando que se reestabeleça a base do negócio jurídico de forma proporcional, razoável e sem afronta aos princípios da dignidade humana e função social que permeiam os contratos, por força dos artigos 317 e 478 do Código Civil, supramencionados. Reitera-se, no entanto, que os fatos devem causar um impacto econômico negativo ao devedor o impossibilitando de adimplir a obrigação para que se possa cogitar a possibilidade de aplicação da Teoria da Imprevisão sobre os efeitos vinculativos do contrato.
Diante desse cenário, o Senado Federal aprovou em 03/04/2020 o Projeto de Lei 1.179/2020, iniciada naquela casa, que visa flexibilizar as relações jurídicas durante a pandemia de coronavírus. Pelo projeto de lei, as consequências decorrentes da pandemia do Coronavírus (COVID-19) são consideradas como casos de força maior, motivo pelo qual a inadimplência não pode gerar ao devedor a imposição de penalidades pela inexecução contratual por se tratar de inadimplemento involuntário, retirando-se, então, a culpa do devedor pelo não cumprimento da obrigação, já que este não tinha como evitar ou impedir os efeitos dos acontecimentos.
O art.393 do Código Civil traz, no entanto, redação limitadora dos efeitos da imprevisibilidade, mais precisamente sobre os casos fortuitos e de força maior, sobre os contratos, dispondo que caso haja responsabilização expressa por parte do devedor, este responderá pelos prejuízos decorrentes do inadimplemento.
Surge daí a questão: havendo cláusula de proibição de revisão contratual a teoria da imprevisão poderá ser aplicada aos contratos nesse momento de consequências extremas?
Como visto, tratando-se de contrato de adesão o art.424 do Código Civil determina a nulidade de cláusulas que impliquem a renúncia antecipada do aderente a direitos decorrentes do próprio negócio jurídico, ou seja, não se trata de superveniência de fatos imprevisíveis e sim de cláusula expressa acerca de possíveis direitos que surgem com a execução ou descumprimento do contrato aderido. Nesse contexto, por inferência lógica a cláusula de renúncia não surte efeitos contra a aplicabilidade da teoria da imprevisão, pois é nula desde a sua origem. Havendo, portanto, a superveniência de eventos imprevisíveis que impliquem na redução da capacidade econômica do obrigado, parece-nos que há a possibilidade da revisão ou resolução contratual, sem a implicação de culpa ao devedor pela inexecução contratual.
Quanto aos contratos de aluguel, a cláusula de proibição de revisão por ventura fixada comutativamente impede a revisão contratual mesmo diante de fatos supervenientes e imprevisíveis, pois os contratantes, embora não preveem a especificidade do evento futuro, consideram que qualquer acontecimento seja incapaz de impactar a força obrigatória do contrato, impedindo sua revisão e extinção por força desses eventos. Assim acontece com os contratos de locação não residencial em que as partes pactuam a cláusula de não revisão contratual disposta no art.54-A, §1º da Lei 8.245/1991.
Todavia, parece-nos que sobrevindo a aprovação do Projeto de Lei 1.179/2020, a especialidade da norma temporária ensejaria em um temperamento da cláusula de não revisão contratual nas avenças fundadas em locação não residencial, possibilitando a revisão contratual diante das consequências advindas da pandemia pelo coronavírus (COVID-19).
5) Conclusão
A exposição acerca dos princípios contratuais, como dito, fez-se necessária para a compreensão da relação negocial alicerçada na autonomia da vontade, boa-fé objetiva e função social do contrato. E também para que possamos compreender que embora a liberdade de contratar seja inerente ao sujeito da relação jurídica, ficando este vinculado aos termos pactuados e obrigado ao cumprimento das obrigações decorrentes do instrumento, o adimplemento da avença pode ficar prejudicado por acontecimentos não previstos no momento da formação do contrato, motivo pelo qual sua execução, inadvertidamente, se torna manifestamente desproporcional e impossível para o devedor.
Havendo fatos supervenientes e imprevisíveis, torna-se possível, então, que os sujeitos da relação jurídica pleiteiem uma mitigação dos efeitos do contrato para que possam adequar as obrigações contratuais à realidade atual.
A pandemia pelo coronavírus (COVID-19) vem sendo tratada pelo poder público como evento imprevisível que modificou todas as condições de normalidade anteriormente presentes nas relações sociais, econômicas e políticas da sociedade brasileira, tanto que atos emergenciais executados pelo poder executivo e legislativo de todos os níveis de governo direcionam o Estado ao isolamento social como forma de prevenir a disseminação do vírus. Basta levarmos em consideração a quantidade de medidas provisórias e decretos executivos que vêm sendo editados nesse período de instabilidade visando a manutenção da dignidade humana e a garantia do mínimo existencial para as pessoas que sofreram com a redução drástica de seu poder econômico pelos mais variados motivos, todos decorrentes do surgimento do novo vírus.
Não há, portanto, como afastar a imprevisibilidade dos atuais acontecimentos decorrentes da pandemia pelo coronavírus, nem como deixar de considerar que as relações jurídicas serão inevitavelmente impactadas pelas consequências da pandemia que aflige o mundo.
Sendo assim, a conclusão lógica que se alcança com as considerações feitas é que a COVID-19, considerada como evento imprevisível e como caso de força maior, impacta negativamente a situação econômica das pessoas que se tornarão inadimplentes frente suas obrigações por impossibilidade de executar os contratos decorrentes de negócios jurídicos realizados nos moldes originários, quando se impunha uma condição de normalidade no momento de formação do contrato.
Por esse motivo, observadas as normas e preceitos jurídicos analisados, parece-nos plenamente aplicável a teoria da imprevisão tanto para revisão dos contratos quanto para a resolução do negócio jurídico, considerando que o sacrifício econômico pelo devedor será de tal maneira que a onerosidade excessiva decorrente da ausência ou redução imediata de sua renda afetará sua própria existência de forma digna.
Diante disso, os contratos em voga podem ser analisados sob o prisma da Teoria da Imprevisão com o objetivo de se reestabelecer o equilíbrio das obrigações, para que a situação originária baseada na proporcionalidade, boa-fé, função social e dignidade humana seja mantida ou sofra o menor impacto possível, impedindo prejuízos de monta irreparáveis que inevitavelmente afetarão a dignidade da sobrevivência humana neste período de calamidade pública em que nos encontramos.
Bibliografia
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria geral dos contratos típicos e atípicos: curso de direito civil/ Álvaro Villaça Azevedo. – 3. ed. – São Paulo: Atlas, 2009.
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Júlio César Oliveira de Souza
Advogado inscrito na OAB/GO – 51.113; OAB/RS – 114069A, com experiência profissional em Direito Civil, Consumidor e Trabalhista; Membro da Comissão de Direito Ambiental da OAB subseção Nova Petrópolis-RS; Membro da Comissão de Jovens Advogados da OAB subseção Nova Petrópolis-RS; Pós Graduação (especialização) em Direito Civil e Processual Civil Universidade Caxias do Sul, em andamento; Graduado em Direito pela Universidade Salgado de Oliveira (unidade Goiânia-GO).