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A TUTELA DO DIREITO SOCIAL À SAÚDE DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19

A TUTELA DO DIREITO SOCIAL À SAÚDE DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19

A TUTELA DO DIREITO SOCIAL À SAÚDE DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19

 

  

                                                                                                   Kárenn Larisse Santos Pacheco

                                                                                            Rafaela Rodrigues Moreira da Cruz

                                                                      Orientador: Clodoaldo Moreira dos Santos Júnior

 

 

 

Resumo:Não obstante, a Constituição de 1988 ter sido a primeira a disciplinar o direito social à saúde de modo satisfatório, o referido direito é tutelado rotineiramente pelo Poder Judiciário, ante falhas na prestação estatal deste serviço público. Com a pandemia de COVID-19 outra vertente atinente à tutela da saúde foi explorada, qual seja a interpretação das normas de competência enunciadas na Constituição em vigor. Isto posto, o presente artigo científico têm por objetivo analisar o posicionamento dos Tribunais brasileiros em relação à competência administrativa e legislativa, ou seja, a atribuição para executar políticas públicas ou legislar sobre saúde, durante o período de calamidade pública, tendo em vista a quantidade de atos normativos que foram publicados com o intuito de diminuir os impactos da pandemia. Ao final ultima-se que as medidas de enfretamento adotadas pelo Poder Executivo Federal não afastam a competência dos Municípios, dos Estados e do Distrito Federal para legislarem sobre saúde. Para tanto, será utilizado o método indutivo, tendo em vista a análise de dados particulares coletados na doutrina e na jurisprudência para emissão de conclusões gerais, assim como o método histórico, haja vista a explanação do surgimento e desenvolvimento tanto dos direitos sociais como do direito à saúde especificadamente.

 

Palavras-chave: Judicialização. Federalismo. Competência dos entes federativos.

INTRODUÇÃO

Durante a primazia do Estado Liberal as constituições zelavam apenas por direitos individuais relativos à limitação do poder estatal. No entanto, a Primeira Guerra Mundial reverberou as mazelas sociais e as desigualdades econômicas oriundas da não intervenção estatal na economia. Nesse cenário, surge o Estado Social arraigado em constituições que protegem os indivíduos do arbítrio estatal e obrigam o Estado a cumprir com prestações positivas relacionadas à sobrevivência dos mesmos.

Apesar dos direitos sociais emergirem mundialmente em meados do século XIX, a disciplina do direito social à saúde nas constituições brasileiras foi insuficiente por muitos anos. Hodiernamente, a Constituição Federal de 1988 disciplina-o com maestria, em exemplificação, no artigo 6º o concebeu como um direito social, nos artigos 196 a 200 tratou das suas particularidades, especialmente no tocante ao desenvolvimento de políticas públicas.

Contudo, ainda assim as reclamações acerca da ausência ou deficiência nas prestações do serviço público de saúde são frequentes na mídia e no Poder Judiciário. Os anseios dos cidadãos são variados, mas em geral exige-se o fornecimento de um medicamento de alto custo, a realização de um procedimento cirúrgico, ou a liberação de uma vaga em unidade de terapia intensiva

Em março deste ano, após a Organização Mundial da Saúde considerar o surto de COVID-19 como uma pandemia, e o vírus chegar ao Brasil aliaram-se as demandas rotineiras, outras tantas envolvendo pacto federativo, tripartição de poderes e competência. A população, por sua vez, se viu rodeada de normas municipais, estaduais e federais sobre saúde, por vezes conflitantes.

Diante uma realidade em que cada esfera do Poder Executivo parecia interpretar a Constituição Federal de 1988 da maneira que melhor lhe convinha, coube aos tribunais, mormente ao Supremo Tribunal Federal, posicionarem-se sobre esses imbróglios. Nesse contexto, a academia precisa analisar a temática minuciosamente, verificando a técnica e assertividade das interpretações conferidas pelos tribunais pátrios durante a crise sanitária.

Para a elaboração dessa pesquisa foram realizadas consultas em vasto referencial bibliográfico, qual seja, doutrinas, jurisprudência e publicações científicas. Os conceitos, significados e valores da pesquisa não podem ser quantificados, razão pela qual enquadra -se como pesquisa bibliográfica qualitativa.

No que tange aos métodos, dois foram empregados, o indutivo e o histórico. O indutivo se fez presente na análise de dados particulares doutrinários e jurisprudenciais, para posterior emissão de noções e conclusões gerais. Enquanto o histórico foi usado na abordagem da evolução tanto dos direitos sociais como do direito à saúde especificadamente.

1 NOÇÕES HISTÓRICAS ACERCA DO DIREITO SOCIAL À SAÚDE

Inicialmente, antes de adentrarmos nas peculiaridades do direito à saúde, faz-se necessário tecer esclarecimentos sobre os direitos sociais. De acordo com o magistério do ministro Luís Roberto Barroso (2019) o surgimento dos direitos fundamentais individuais, políticos, sociais e difusos foi concomitante às conquistas civilizatórias. Os direitos fundamentais nasceram como direitos individuais na Declaração de Independência dos Estados Unidos de 1776 e na Declaração francesa de Direitos do Homem e do Cidadão de 1989.

A partir do primado dos direitos individuais o súdito torna-se cidadão, e passa a ter um arcabouço legislativo que o protege dos arbítrios estatais. Na sequência, os direitos políticos foram desenvolvendo-se gradativamente, e o cidadão ganha o poder de escolher os representantes do estado através do voto. Os direitos econômicos, sociais e culturais, denominados como direitos sociais, por sua vez, despontaram na Constituição mexicana de 1917 e na Constituição alemã de Weimar de 1919, marcando a superação do estado estritamente liberal (BARROSO,2019).

As menções à direitos difusos datam das últimas décadas, e englobam direitos pertencentes a sujeitos indeterminados, cuja satisfação de um titular implica na dos demais. Na visão de Uadi Lammêgo Bulos (2018) os direitos sociais constituem lídimas prestações positivas estatais, quem têm por objetivo proporcionar à população condições de vida mais decentes e condignas com o princípio da igualdade substancial. O ministro Barroso (2019) destaca que estes direitos estão relacionados com a superação das falhas do mercado, com a proteção contra a pobreza e com a promoção de justiça social.

O direito social à saúde foi tutelado pela primeira vez, de modo ainda incipiente, na Constituição Política do Império do Brasil de 1824. O artigo 179, inciso XXXI da carta constitucional garantia os socorros públicos (BRASIL, 1824). Posteriormente, o artigo 10 da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934, previa a competência concorrente da União e dos Estados para cuidar da saúde pública (BRASIL, 1934). Contudo, apenas a Constituição Federal em vigor, datada de 1988, tratou à saúde como direito fundamental, ao inseri-la no rol dos direitos sociais.

A Carta Magna também dedicou uma seção do título VIII, denominado “Da ordem social”, para a disciplina da saúde. O artigo 198, integrante da seção mencionada, consagra a saúde como um direitos de todos, bem como impõe ao Estado o dever de desenvolver políticas sociais e econômicas com vistas a reduzir o risco da doença, a garantir o acesso universal e igualitário às ações e serviços (BRASIL, 1988). 

A Organização Mundial de Saúde define saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social,e não somente ausência de afecções e enfermidades” (BULOS, 2018, p.1591).  Por conseguinte, o direito à saúde compreende a tutela do estado de completo bem-estar físico, mental, espiritual do indivíduo, assim como representa uma consequência constitucional indissociável do direito à vida.

 Consoante o ministro Gilmar Ferreira Mendes e o jurista Paulo Gustavo Gonet Branco (2019) o estudo da saúde no Brasil, leva a concluir que a lamentável carência de eficácia social deste direito social decorre de questões relativas à implementação e manutenção das políticas públicas, à composição dos orçamentos dos entes federados, enfim à execução administrativa.

2 ESTADO FEDERAL

O Federalismo foi introduzido na Constituição Federal de 1891, entretanto este em alguns momentos históricos ficava restrito ao seu caráter nominal (Constituição de 1934, 1946 e 1967), em outros era extirpado do texto constitucional (Constituição de 1937). Porém, com a promulgação da Constituição Federal de 1988 o Federalismo consolidou-se, retornando aos moldes democráticos, e tornando-se cooperativo, na medida em que o poder se concentra mais fortemente na esfera federal, mas é exercido de maneira recíproca pelos entes federados.

  A atual Carta Magna adotou como forma de Estado a federação, conforme expressa seu artigo 1º, assim como elevou-a cláusula pétrea. Para André Ramos Tavares (2020, p. 1061) “o Estado denominado federal apresenta-se como o conjunto de entidades autônomas que aderem a um vínculo indissolúvel, integrando-o. Dessa integração emerge uma entidade diversa das entidades componentes, e que incorpora a federação”. 

          No Federalismo Cooperativo há uma descentralização de poder, através da distribuição de parcelas de administração política entre os estados federados, detentores de autonomia, porém, sem independência política em relação ao Estado Federal.  Nas palavras do ilustre doutrinador Pedro Lenza em seu livro Direito Constitucional Esquematizado:

Estados federados são autônomos, em decorrência da capacidade de auto organização, autogoverno, autoadministração e autolegislação. Trata-se de autonomia, e não de soberania, na medida em que a soberania é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (LENZA, 2019,p.767).

Seguidamente, dispõe o artigo 18 da Constituição Federal que a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, sendo todos autônomos nos termos da Lei Maior (BRASIL, 1988). Assim, em um Estado do tipo federado, a autonomia dos entes federativos pressupõe repartição constitucionalmente estabelecida, de competência material (administrativa), legislativa (editar leis) e tributária. Nesse artigo vamos nos ater as duas primeiras.

 A Constituição Federal de 1988 utiliza dessa repartição para partilhar entre os entes federados diferentes atribuições, visando garantir uma convivência harmoniosa e uma efetiva descentralização de poder e alocação de renda.  No âmbito da competência administrativa, é possível verificar duas espécies, a exclusiva (artigo 21, CF/88) e a comum (artigo 23, CF/88). Na exclusiva a atribuição fica a cargo apenas da União, sendo esta indelegável a qualquer ente, e na comum as atribuições são direcionadas a todos os entes concomitantemente (BRASIL, 1988).

Sob outro prisma, a competência legislativa divide-se em quatro espécies, privativa (artigo 22, CF/88), concorrente (artigo 24, CF/88), suplementar (artigo 24, § 2º) e reservada (artigo 25, CF/88). Na privativa as atribuições são direcionadas à União, admitindo-se sua delegação, na concorrente as atribuições são compartilhadas entre a União, os Estados e o Distrito Federal, enquanto na suplementar as atribuições são direcionadas aos Estados, caso a União tenha restado omissa, e por fim na reservada é atribuída a um ente tudo que a Constituição não atribui como competência a outro ente (BRASIL, 1988).

Destarte, o doutrinador Pedro Lenza (2019) dispõe que em se tratando de competência legislativa, cabe a União legislar sobre normas gerais e princípios, enquanto os Estados, completando-as, legislam tratando de matérias de interesse regional, e os Municípios, legislam sobre interesse local.

Para o jurista, Dalmo de Abreu Dallari a Carta Magna de 1988 confere as diretrizes para resolução de eventuais conflitos de normas produzidas por entes federados distintos, vejamos:

 [...] não existe hierarquia entre esses poderes legislativos, o que significa que, em caso de dúvidas ou leis conflitantes, será necessário buscar na Constituição as diretrizes para se concluir qual das leis deve prevalecer. Por outros termos, em caso de dúvida quanto ao cabimento de uma lei ou de conflito entre leis originárias de diferentes centros de poder político, deve-se verificar na Constituição a quem foi atribuída competência para legislar sobre a matéria objeto da lei questionada (DALLARI,2006, p.1).

 Nas palavras de André Ramos Tavares (2020, p. 1060) “todos os componentes do Estado federal encontram-se no mesmo patamar hierárquico, ou seja, não há hierarquia entre essas diversas entidades, ainda que alguma seja federal e outras estaduais ou municipais”.

2.1 COMPETÊNCIA DOS ENTES FEDERATIVOS PARA LEGISLAR SOBRE SAÚDE

A atual Constituição Federal visando suprir a necessidade geral e específica de todos os entes federativos, na prestação e no resguardo dos direitos sociais, de modo especial, quanto ao direito social à saúde, atribuiu aos quatro entes políticos a competência administrativa comum ou cumulativa (artigo 23, CF/88) para cuidar da saúde e assistência pública (BRASIL, 1988).

 Interessante ressaltar que o constituinte dispôs que leis complementares fixarão normas para a cooperação entre os entes federativos, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem estar em âmbito nacional (artigo 23, parágrafo único). De acordo com Pedro Lenza (2019, p. 755) o objetivo dessas leis complementares “é evitar não só conflitos como também a dispersão de recursos, procurando estabelecer mecanismos de otimização dos esforços.”

O artigo 30, inciso VII da Constituição Federal de 1988 estabelece que os Municípios deverão prestar serviços de atendimento à saúde da população com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado. Ademais, a própria Lei Magna cria um Sistema Único de Saúde (artigo 198), o qual têm a função de coordenar e  executar as políticas públicas para proteção e promoção da saúde de forma regionalizada e hierarquizada, obedecendo à diretriz de descentralização e comando único, isto é, cada esfera de governo é autônoma e soberana nas suas decisões e atividades (BRASIL, 1988).

Outrossim, quanto a competência legislativa, ou seja, competência constitucionalmente definida, para elaborar leis no que tange à saúde, a Carta Magna (artigo24) dispõe que a competência será concorrente entre a União, Estados e o Distrito Federal. Isto é o mesmo que dizer que será exercida simultaneamente pelos entes federativos (BRASIL, 1988).

Para o doutrinador André Ramos Tavares (2020) na competência legislativa concorrente as normas gerais cabem à União, e aos Estados membros cabem às normas particulares, o que justifica a competência dos Estados ser denominada complementar. Porém, inexistindo lei federal os Estados exercerão a competência legislativa plena e na superveniência de norma federal a eficácia da norma estadual será suspensa.

Todavia, é importante ressaltar que embora a aludida norma constitucional, não tenha se referido aos Municípios, a própria Constituição Federal em seu artigo 30, incisos I e II, permite elucidar que este ente federativo possui competência para legislar sobre as necessidades locais, ou suplementar as leis federais ou estaduais no que couber (BRASIL, 1988). Para Lenza (2019) a expressão “no que couber” norteia a atuação municipal, balizando-a dentro do interesse local.

Como regra geral, deve-se respeitar a hierarquia existente entre as normas, entretanto é certo que em alguns momentos deverá ocorrer uma ponderação de interesses, vez que uma norma com hierarquia inferior muitas vezes poderá ser mais protetiva e eficaz que uma norma de hierarquia superior.

Conforme Pedro Lenza (2019), comumente a legislação estadual está mais próxima do sumo da eficacidade máxima da Constituição em termos de direito a saúde. Nesse contexto é prudente e razoável que as decisões proferidas, visando sanar conflitos de leis seja embasadas em preceitos como o da proporcionalidade e da máxima eficiência e não apenas com a análise e interpretação literal e hierárquica da norma.

Nesse sentido, cabe destacar o julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 3406 e 3470, propostas pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria (CNTI) contra a Lei 3.579/2001, do Estado do Rio de Janeiro. De acordo com a entidade de classe, a referida lei ofenderia os princípios da livre iniciativa e invadiria a competência privativa da União (BRASIL,2017).

A relatora ministra Rosa Weber, ao votar pela improcedência das ações, salientou em seu voto que não é constitucional uma norma estadual confrontar a diretriz geral federal, mas não há impedimentos em adoção de uma postura mais cautelosa, haja vista que a proteção mínima da lei federal, não pode ser obstáculo para uma maximização de proteção estadual (BRASIL,2017).

3 A JUDICIALIZAÇÃO E O ATIVISMO JUDICIAL

A República Federativa do Brasil em sua atual Carta Magna permitiu a interferência proativa da sociedade civil na execução de serviços públicos, especialmente nos de saúde, visando garantir o acesso universal e igualitário a todos os cidadãos. De acordo com o magistério de Maria Paula Dallari Bucci e Clarice Seixas Duarte (2017) a opção do constituinte acarretou o enfraquecimento da máquina estatal em relação às políticas públicas sociais, cenário propício para os cidadãos exigirem prestações positivas estatais que satisfaçam seus direitos sociais em ações judiciais.

A decisão de questões de grande repercussão política ou social por órgãos do Poder Judiciário, e não pelos Poderes Legislativo e Executivo, tradicionalmente detentores de competência para tanto, é denominada judicialização. Consoante o Ministro Luís Roberto Barroso (2008) três fatores colaboraram para a judicialização, são eles a redemocratização do país, a constitucionalização abrangente e o sistema de controle de constitucionalidade.

A redemocratização do país culminou na promulgação da Constituição em vigor, a qual recuperou as garantias da magistratura e tornou o Judiciário um verdadeiro poder político, apto a conferir efetividade ao ordenamento jurídico pátrio.  A Carta Magna foi ainda mais além, ao tratar de inúmeras matérias antes relegadas à legislação infraconstitucional, e ao instituir o Controle Concentrado de Constitucionalidade, tornando o sistema brasileiro de controle híbrido, e um dos mais vastos do mundo (BARROSO,2008).

Outrossim, com a vasta submissão da tutela dos direitos sociais ao Poder Judiciário ou  a judicialização destes direitos, somada ao direito de petição, a garantia de acesso ao Poder Judiciário e ao princípio da inafastabilidade da jurisdição abriu-se caminhos para outro fenômeno, o ativismo judicial. O magistrado não se exime de apreciar pedidos, sob o argumento de que existem lacunas ou obscuridades na lei. Nesse contexto, o Poder Judiciário assume postura proativa e ingressa em áreas não atinentes a sua função para cumprir seu múnus público (BARROSO, 2008).

O ativismo judicial compreende a efetiva participação do Poder Judiciário na concretização dos valores e finalidades constitucionais, com grau significativo de interferência nos outros poderes da República. A título de exemplo, a imposição de ações ou abstenções ao Poder Público, especialmente na seara de políticas públicas, trata-se de postura ativista. O Ministro Luís Roberto Barroso distingue judicialização e ativismo judicial de maneira ímpar.

A judicialização e o ativismo judicial são primos. Vêm, portanto, da mesma família, frequentam os mesmos lugares, mas não têm as mesmas origens. Não são gerados, a rigor, pelas mesmas causas imediatas. A judicialização, no contexto brasileiro, é um fato, uma circunstância que decorre do modelo constitucional que se adotou, e não um exercício deliberado de vontade política. [...]o Judiciário decidiu porque era o que lhe cabia fazer, sem alternativa. Se uma norma constitucional permite que dela se deduza uma pretensão, subjetiva ou objetiva, ao juiz cabe dela conhecer, decidindo a matéria. Já o ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente ele se instala em situações de retração do Poder Legislativo, de um certo descolamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva (BARROSO, 2008,p.6).

Em breve síntese, a judicialização decorre da vontade do constituinte fornecer ao cidadão instrumentos judiciais para resguardar seus direitos, enquanto o ativismo nasce quando o intérprete confere uma interpretação proativa, com vistas a driblar o processo legislativo, que se mostra inerte. Na visão do Ministro Barroso (2008) o Poder Judiciário deve ser o guardião da Constituição, dos valores e procedimentos democráticos, inclusive em face de outros poderes.

O ativismo judicial deve ser usado a favor da concepção majoritária da população, sob pena de afronta a democracia, pois é antibiótico, cuja dose excessiva causa morte (BARROSO, 2008). O direito à saúde tem sido pauta frequente nos tribunais brasileiros, contudo os pedidos não são uniformes, alguns envolvem o fornecimento de determinado medicamento ou procedimento, outros abrangem o aperfeiçoamento de políticas públicas.

A maior parte dos litígios sobre saúde esbarram no embate entre mínimo existencial e questões orçamentárias ou princípio da reserva do possível. No ano de 2016 a Emenda Constitucional nº 95 agravou consideravelmente as mazelas da saúde pública brasileira, ao alterar o artigo 107 da Constituição de 1988, limitando as despesas primárias da União à quantia gasta no ano anterior corrigida pela variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) (BRASIL,2016) .

Impende-se destacar que não houve alteração nos gastos constitucionais obrigatórios em saúde, mas sim uma mudança no indexador que deixou de ser a variação do Produto Interno Bruto (PIB), apto a considerar a inflação e o crescimento da economia. Todavia, as pesquisas projetam prejuízos significativos ao Sistema Único de Saúde originados pela mudança reportada, senão vejamos:  

Se examinada a vinculação ao PIB ou IPCA ao longo de 20 anos, considerando uma média de crescimento do PIB na casa 2% ao ano, estima-se uma perda na sáude de cerca de 654 bilhões de reais acumulada no período. Quanto ao melhor desempenho da economia brasileira nos próximos 20 anos, maiores serão as perdas no Orçamento da Saúde, em virtude da mudança do indexador. O único cenário em que o IPCA preponderaria em relação ao PIB é no caso de não haver crescimento econômico durante os 20 anos e com aplicação de 15% das receitas correntes líquidas ao ano, ou seja, algo improvável (SOARES, 2018, p. 206).

Em concomitância com os assuntos supramencionados, a responsabilidade dos entes federados, a competência administrativa e a competência legislativa no que tange ao direito social à saúde têm sido reverberada nos tribunais, especialmente durante a pandemia de COVID-19.

4. A PANDEMIA E SEUS DESDOBRAMENTOS NO ÂMBITO LEGISLATIVO

Com o fim de minimizar os impactos e os possíveis reflexos causados pela COVID-19 o legislador se posicionou em uma situação de emergência legislativa em sentido amplo. Desde o início do estado de calamidade pública decretado pelo Governo Brasileiro, foram sancionadas cerca de 52 normas, entres leis, portarias, resoluções, medidas provisórias e instruções normativas (PLANALTO, 2020).

Entre inúmeros, relevante expor a Lei nº 13.979/20, de 06 de fevereiro de 2020, que estabelece as medidas a serem adotadas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do novo coronavírus. A referida norma objetivando a proteção da coletividade expõe e delineia sobre as providências a serem tomadas pelas autoridades, no âmbito de suas competências, definindo algumas delas em seus artigos 2º, I e II e 3º, I a VIII e § 1º, in verbis:

Art.2º Para os fins do disposto nesta Lei, considera-se : I - isolamento: separação de pessoas doentes ou contaminadas, ou de bagagens, meios de transporte, mercadorias ou encomendas postais afetadas, de outros, de maneira a evitar a contaminação ou a propagação do coronavírus; II - quarentena: restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus. Art.3º. III - determinação de realização compulsória de: a) exames médicos; b) testes laboratoriais; c) coleta de amostras clínicas; d) vacinação e outras medidas profiláticas; ou e) tratamentos médicos específicos; III -A – uso obrigatório de máscaras de proteção individual; IV- estudo ou investigação epidemiológica; V - exumação, necropsia, cremação e manejo de cadáver; VI - restrição excepcional e temporária, por rodovias, portos e aeroportos, de: a) entrada e saída do País; e b) locomoção interestadual e intermunicipal; VII - requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa; VIII -autorização excepcional e temporária para a importação e distribuição de quaisquer materiais, medicamentos, equipamentos e insumos da área de saúde sujeitos à vigilância sanitária sem registro na Anvisa, desde que: a) registrados por pelo menos 1 (uma) das seguintes autoridades sanitárias estrangeiras e autorizados à distribuição comercial em seus respectivos países: 1.  Food and Drug Administration (FDA); 2.  European Medicines Agency (EMA); 3.  Pharmaceuticals and Medical Devices Agency (PMDA); 4.  National Medical Products Administration (NMPA) .§ 1º As medidas previstas neste artigo somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública. (BRASIL,2020).

Valendo mencionar ainda que conforme o artigo 4º da referida lei, as licitações para aquisição ou contratação de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública, tornaram-se dispensáveis por tempo determinado, ou seja, enquanto perdurar a emergência de saúde pública (BRASIL, 2020).

Outrossim,  resta importante  consignar todo o abalo que essas medidas de contenção para diminuição da propagação do novo coronavírus causaram na sociedade, uma vez  que o Brasil é um país com enorme nível de desigualdade social. No âmbito internacional, foi aprovada em 10 de abril de 2020 a Resolução nº 01/20 que estabelece padrões e recomendações, objetivando que as medidas adotadas pelos Estados membros da Organização dos Estados Americanos na atenção e contenção da pandemia tenham como centro o pleno respeito aos direitos humanos (OEA, 2020).

Ademais, foi publicada em 08 de maio de 2020, a Emenda Constitucional nº 106, conhecida como PEC do “Orçamento de Guerra”, instituindo um regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações para enfrentamento da calamidade pública nacional. Permitindo ao Poder Executivo Federal, no âmbito de suas competências, adotar processos simplificados de contratação de pessoal e de obras, serviços e compras, sem exigência de licitação e concurso público, tratando-se de uma exceção constitucional e temporária da regra geral (BRASIL, 2020).

Continuamente, a norma de vigência temporária permite a adoção de critérios objetivos para distribuição de equipamentos e insumos de saúde, dispensando as limitações legais ao aumento de despesa e renúncia de receitas. A emenda permite ainda que empresas com débitos na Previdência contratem com o Poder Público, recebam benefícios e incentivos, bem como autoriza a realização de operações de crédito que excedam os montantes das despesas de capital (BRASIL, 2020).

5. A JURISPRUDÊNCIA DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19

No contexto exposado, faz-se mister mencionar algumas decisões judiciais relevantes e pertinentes acerca do tema abordado neste artigo, haja vista que mostra-se inviável esgotar toda a jurisprudência formada no contexto da pandemia de COVID-19. De acordo com um levantamento do próprio Supremo Tribunal Federal até outubro de 2020 apenas a Corte Excelsa teria recebido 5.909 processos envolvendo o tema, sendo que ao menos 4.000 ações abordam questões relativas ao impacto ou repercussão da pandemia (STF, 2020).

Resta oportuno destacar ainda que o Poder Judiciário, em todas as suas instâncias, é responsável por resguardar o direito à saúde de todos os cidadãos.  Possuindo o dever de fiscalizar a legalidade, a efetividade e a eficiência das políticas públicas emergenciais e zelar para que a atuação dos agentes responsáveis pelo enfrentamento da crise se paute no mais elevado nível de legalidade.

O Partido Democrático Trabalhista (PDT) ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6341 com a finalidade de ver declarada a incompatibilidade parcial de dispositivos da Medida Provisória nº 926, de 20 de março de 2020, com a Constituição Federal, sob o argumento de que a redistribuição de poderes de polícia sanitária interferiu no regime de cooperação entre os entes federativos.  Impende-se destacar que referida medida provisória introduziu na Lei nº 13.979/20, parâmetros para combate ao novo coronavírus (BRASIL, 2020).

Em decisão liminar, prolatada em 24 de março de 2020, o ministro relator Marco Aurélio, deferiu em parte medida acauteladora ressaltando a existência de competência concorrente como argumento em seu voto, senão vejamos:

[...]não se pode ver transgressão a preceito da Constituição Federal. As providências não afastam atos a serem praticados por Estado, Distrito Federal ou Município, considerada a competência concorrente na forma do artigo 23, inciso II, da Lei Maior. Vê-se que a medida provisória, ante quadro revelador de urgência e necessidade de disciplina, foi editada com a finalidade de mitigar-se a crise internacional que chegou ao Brasil (BRASIL, 2020, p.5).

Posteriormente, submetida em 15 de março de 2020, ao crivo do Plenário da Suprema Corte, em sessão realizada por videoconferência, o Tribunal, por unanimidade confirmou o entendimento, de que as medidas adotadas pelo Governo Federal na Medida Provisória nº 926/2020 para o enfrentamento do novo coronavírus não afastam a competência concorrente nem a tomada de providências normativas e administrativas pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios (BRASIL, 2020).

A maioria aderiu à proposta do ministro Edson Fachin sobre a necessidade de que o artigo 3º, § 9º, da Lei nº 13.979/2020 também seja interpretado de acordo com a Constituição, a fim de deixar claro que a União pode legislar sobre o tema, desde que no exercício desta competência sempre seja resguardada a autonomia dos demais entes. No entendimento de Fachin (2020), a possibilidade do chefe do Executivo Federal definir por decreto a essencialidade dos serviços públicos, sem observância da autonomia dos entes locais, afrontaria o princípio da separação dos poderes.

No mesmo sentido, o Partido Rede Sustentabilidade apresentou a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6343, pedindo a suspensão de pontos das Medidas Provisórias nº 926/2020 e 927/2020, que tratam do transporte intermunicipal durante a pandemia. O Plenário da Suprema Corte, em sessão do dia 06 de maio de 2020, proferiu decisão acolhendo parcialmente a medida cautelar (BRASIL, 2020).

Consoante o plenário, os estados e municípios, no âmbito de suas competências e em seu território, podem adotar, respectivamente, medidas de restrição à locomoção intermunicipal durante o estado de emergência de saúde pública decorrente do novo coronavírus, sem a necessidade de autorização ou observância do ente federal. Ademais, os ministros conferiram a interpretação de que referidas medidas devem ser precedidas de recomendação técnica e fundamentação (BRASIL, 2020).

O plenário prezou ainda pelo resguardo a locomoção dos produtos e serviços essenciais definidos por decreto da respectiva autoridade federativa, sempre respeitadas às definições no âmbito da competência constitucional de cada ente federativo (BRASIL, 2020).

Nas palavras do doutrinador Robério Nunes (2020), deve existir uma valorização da competência suplementar dos Estados e Munícipios, de modo que as competências tidas como menores devem ser privilegiadas.  É o que estamos vivenciando nas decisões, essa tendência vem se confirmando. A União deve assumir a coordenação efetiva buscando acabar com a polarização nefasta, mantendo um diálogo institucional com respeito não só as competências, mas também as instituições democráticas, aos valores civis, científicos e a dignidade humana.

Na mesma linha, a constitucionalista Flávia Bahia (2020) explicita que os entes federados devem primar por uma atuação harmônica, visando a um equilíbrio federativo. A Suprema Corte não legitimou a arbitrariedade e sim a atuação dos entes a luz da proporcionalidade, buscando medidas adequadas, necessárias e justas. Priorizando-se as decisões mais restritivas no encalço de mitigar os impactos das atitudes tomadas.

  As contendas acerca da competência administrativa e legislativa não ficaram restritas a Suprema Corte, na medida em que tribunais inferiores também foram incitados a manifestarem-se sobre a questão. A título de exemplificação, o prefeito do município mato-grossense de Barra do Garças publicou os Decretos nº 4.300  e 4.302 de 2020, com medidas temporárias, restringindo algumas atividades privadas em prol da contensão da disseminação da COVID-19 (BRASIL, 2020).

O Ministério Público do Mato Grosso ajuizou Ação Civil Pública, objetivando anular os decretos supramencionados, ante afronta ao texto do Decreto nº 432, editado pelo governador do Estado do Mato Grosso. O magistrado de primeiro deferiu em parte o pedido liminar do Ministério Público, coibindo o funcionamento de academias, cinemas, o consumo de mercadorias em bares e restaurantes, a celebração de cultos religiosos em geral (BRASIL,2020).

Diante o inconformismo com a referida decisão, o município de Barra do Garças, provocou o Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso, em sede de agravo de instrumento com pedido de efeito suspensivo, sustentando que os decretos municipais estão em compasso com o Decreto Federal nº 10.282 de 2020 . A relatora Desembargadora Maria Aparecida Ribeiro, ao julgar o pedido de efeito suspensivo no agravo de instrumento nº 10087578520208110000, reconheceu a competência concorrente da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal para legislar sobre saúde, destacando que os três últimos entes federativos possuem competência suplementar (BRASIL,2020).

Ademais, a relatora denegou efeito suspensivo ao agravo, não suspendendo a decisão de primeiro grau, sob o argumento de que os decretos municipais mitigaram as normas estaduais sem embasamento científico, e de que o Decreto Federal nº 10.2082 não pode ser considerado como norma geral no tocante à disciplina da abertura dos estabelecimentos em questão, vejamos: 

Nesse caso, ao menos em princípio, penso que devem preponderar as regras que impõem maior proteção à saúde da população, sobremodo porque editadas em respeito às peculiaridades e limitações próprias do Sistema de Saúde do Estado do Mato Grosso para combater a calamidade nacional decorrente da pandemia do coronavírus, fatos não considerados pelo Decreto Federal nº 10.282/2020, mesmo porque não inseridos na sua finalidade precípua de regulamentar leis que fixa normas gerais, isto é sem a preocupação com interesses regionais ou locais (BRASIL, 2020,p.1). 

Na mesma acepção, o constitucionalista Pedro Lenza (2019) destaca que a competência para estabelecer as normas para enfrentamento da pandemia do novo coronavírus é concorrente entre a União,os Estados e o Distrito Federal, devendo-se respeitar as normas estabelecidas pelos Municípios no seu interesse local e de forma suplementar. Contudo, todos os entes devem pautar suas atuações dentro da razoabilidade e proporcionalidade, nem um extremo nem outro deve preponderar.

Situação semelhante ocorreu no Estado de Goiás. O Sindicato dos Profissionais em Educação Física do Estado e o Sindicato das Academias do Estado impetraram Mandado de Segurança em face do governador, visando à reabertura das academias de ginástica, cujo funcionamento foi vedado pelo Decreto Estadual nº 9.653 de 2020, sob o argumento de que a atividade física é essencial para a manutenção da saúde dos cidadãos (BRASIL, 2020).

O relator do Mandado de Segurança nº 5225954.55.2020.8.09.0000, Desembargador Gilberto Marques Filho destacou a decisão da Suprema Corte na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 672, para justificar que não há inconstitucionalidade na norma estadual diante da inexistência de prevalência da norma federal (Decreto Federal nº 10.282 de 2020) sobre a estadual (Decreto Estadual nº 9.653 de 2020). No entanto, procedeu a análise da legalidade do decreto estadual:

Ab initio, cumpre evidenciar que o Supremo Tribunal Federal, por meio de decisão prolatada na ADPF 672, definiu que sem prejuízo da análise individualizada da validade formal e material de cada ato normativo estadual, distrital ou municipal, cabe a União nos lindes de sua competência geral “estabelecer medidas restritivas em todo o território nacional, caso entenda necessário”, e o “exercício da competência concorrente dos Governos Estaduais e Distrital e suplementar dos Governos Municipais, cada qual no exercício de suas atribuições e no âmbito de seus respectivos territórios”, assim, até decisão diversa, não há que se falar em prevalência do normativo federal em face do estadual, dado os lindes de competência de cada ente federado. Porém, persiste a análise do pedido alternativo, no que pertine ao exame da legalidade do normativo estadual em vigor, no trato a restrição a abertura dos estabelecimentos que representam os impetrantes, em meio a pandemia que vivenciamos (BRASIL,2020, p.2).

O julgador deferiu liminar, garantindo a reabertura de academias de ginástica com trinta por cento de lotação e observância de regras estatuídas por uma portaria do estado de Santa Catarina, por ter vislumbrado a plausabilidade da tese mandamental e a perpetuação do cenário pandêmico. O Ministério Público do Estado de Goiás não se conformou com a decisão e o imbróglio chegou ao Supremo Tribunal Federal (BRASIL, 2020).

Ao julgar a Medida Cautelar na Suspensão de Segurança nº 5.391/Goiás, o Ministro Luiz Fux deferiu o pedido liminar para suspender os efeitos da decisão proferida no Mandado de Segurança nº 5225954.55.2020.8.09.0000, até seu respectivo trânsito em julgado. Seguindo os precedentes supramencionados da Suprema Corte, o Ministro destacou que as academias de esportes não parecem dotadas de interesse nacional, para justificar a prevalência da legislação editada pela União acerca do tema, e que a decisão recorrida representa grave risco de violação à ordem público-administrativa do Estado de Goiás e a saúde pública (BRASIL,2020).

Em breve síntese, os tribunais pátrios e os constitucionalistas reconheceram a competência concorrente para legislar sobre saúde, no entanto, no conflito entre normas durante o período crítico da pandemia,ao analisarem constitucionalidade, prezaram pela prevalência da norma mais restritiva. A referida prevalência fora justificada pelo limite de capacidade do Sistema Único de Saúde ou pela capacidade da doença transcender a zona local ao impactar outros entes federados.

CONCLUSÃO

  A saúde foi elevada a direito social quando da promulgação da Constituição Federal de 1988, e o Estado adquiriu o dever de assegurá-la efetivamente a todos os cidadãos, como corolário da própria garantia à vida e da dignidade da pessoa humana.

  Com a adoção da Federação como forma de Estado esse direito social à saúde passou a constituir parte das atribuições de cada ente federativo de forma comum, ou seja, todos tem o dever de simultaneamente cuidar e garantir sua aplicabilidade e efetividade.

 Outrossim, o legislador constitucional foi mais além e determinou que seria concorrente a competência da União, dos Estados e do Distrito Federal para legislar sobre saúde. A União estabelecendo normas gerais, e os Estados e o Distrito Federal com normas suplementares, não obstante a observância do interesse local pelos Municípios.

Entretanto com o enfraquecimento estatal em fornecer uma adequada e concreta prestação de serviços de saúde, os cidadãos se viram obrigados a procurar o Judiciário a fim de ver garantido seus direitos, isto é, houve a judicialização da saúde.

Ademais, com o objetivo de assegurar com mais qualidade e dignidade e com menos impactos sociais esse direito, o Poder Judiciário se viu na qualidade de garantidor da saúde, com função proativa, em especial durante a pandemia da COVID -19, haja vista possuir o dever de dar uma interpretação constitucional mais adequada às várias lides que lhe são atribuídas.

Impende-se destacar que nesse cenário o legislador expediu inúmeras normas buscando a diminuição dos danos ocasionados pelo estado de calamidade pública, uma vez que os impactos causados pela pandemia atingiram de maneiras distintas os vários níveis da sociedade, considerando o contexto socioeconômico brasileiro.

Enfim, ultimou-se que para o Supremo Tribunal Federal as medidas adotadas pelo Poder Executivo Federal para o combate a COVID-19 não afastam a competência dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios de legislarem sobre saúde.

REFERÊNCIAS

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Kárenn Larisse Santos Pacheco

Kárenn Larisse Santos Pacheco

Advogada. Especialista em Civil e Processo Civil pela Faculdade Lions- FACLIONS. Especialista em Direito Público: Constitucional e Administrativo pelo Centro Universitário de Goiás-UNIGOIÁS. E-mail: karennlarisse@hotmail.com.

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Rafaela Rodrigues Moreira da Cruz

Rafaela Rodrigues Moreira da Cruz

Advogada. Especialista em Direito Público: Constitucional e Administrativo pelo Centro Universitário de Goiás -UNIGOIÁS. Especializanda em Direito Civil e Processo Civil pela Faculdade Legale. E-mail:drarafaelacruz@gmail.com.

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